quarta-feira, 3 de junho de 2009

Trabalho no Douro: das rogas aos angariadores*

Ano após ano, homens mulheres e algumas crianças, integrados em rogas, rumavam a pé até às estações da Ermida e Porto de Rei, onde apanhavam o comboio para as vindimas, regressando a casa após o seu término . A dureza do trabalho era amenizada por duas a três semanas de convívio, onde não faltava música e dança, noite dentro. Agora, são viagens diárias esgotantes, de madrugada e à tarde, onde falta o conforto e sobra o cansaço. É o ritmo imposto por novas relações de trabalho mediadas por angariadores.

Sina do Douro
Joaquim B. tem 58 anos, mas aparenta mais dez. Desde os nove, na senda dos pais e irmãos mais velhos, aprendeu a calcorrear os socalcos do Douro, primeiro nas vindimas e mais tarde na poda. Frequentou a escola durante seis anos, mas não aprendeu a ler nem a escrever. Apenas conhece os números e sabe fazer contas de cabeça. Antes do início das aulas, em Outubro, já tinha vindimado e carregado muitas cestas de uvas na zona da Régua ou do Pinhão, ganhando a vida precocemente numa vida sem infância. Ler, escrever e contar estavam a mais, não vendo na sua aprendizagem qualquer interesse. Canalizava as energias a distrair os colegas nas aulas e a fazer malfeitorias nos recreios e nas deslocações para a escola e para casa. Os fins de tarde, os sábados e domingos estavam reservados para guardar o gado e ajudar os pais no amanho das terras. Terminado “o martírio” da escolaridade obrigatória, continuou a vida dura nos campos, intervalada pela ida às vindimas e mais tarde à poda.
Casou cedo, aos vinte e um anos. A tropa não o levou até à guerra de África. Não engrossou a avalanche da emigração para Lisboa, França, Alemanha ou Suíça. Foi caseiro durante quinze anos de uma pequena quinta, o que lhe permitiu ir sempre ao Douro. Depois adquiriu uma casa com uma pequena propriedade, trabalhando desde há cerca de vinte anos quase em permanência em quintas vinhateiras. Duas das filhas conheceram os maridos no trabalho do Douro. Exceptuando a época das cerejas, desde há cerca de dez anos que sai de casa pelas cinco horas da madrugada, regressando pelas dezoito horas numa carrinha dos angariadores, designados como “empreiteiros” pelos trabalhadores. Alguns dos vizinhos são pessoas da sua idade, que regressaram às origens, com reformas razoáveis. Joaquim B. continua no activo, quase sem nada, desconhecendo o que o espera, pois foi sempre um trabalhador “clandestino”, não tendo efectuado quaisquer descontos para a segurança social.

Rogas
Há cinquenta anos ranchos de homens, mulheres e algumas crianças partiam, por volta da festa de Nossa Senhora dos Remédios, das diversas freguesias do concelho rumo às vindimas do Douro. Iam a pé até Porto de Rei e Ermida, normalmente ao som da concertina e, por vezes, também do bombo, ferrinhos e do cavaquinho, onde apanhavam o comboio rumo à Régua, Pinhão e outras estações mais próximas do destino das quintas. Os homens levavam a trouxa, um pau para segurar o cesto vindimo e um saco com roupa e pão. As mulheres transportavam uma cesta na mão para colocar as uvas e um cesto ou saco à cabeça com roupa e pão. Permaneciam no Douro cerca de vinte dias.
Trabalhava-se de sol a sol. Os homens carregavam os cestos ao longo das encostas íngremes até ao lagar, podendo, conforme as distâncias, haver poisos para descansar. Às mulheres competia-lhes ter os cestos cheios na volta dos homens. Os rapazes tinham a incumbência de transportar as cestas, despejando-as nos cestos vindimos. Se a distância do lagar era considerável, poderia ficar combinado como objectivo do dia o enchimento e o transporte de um certo número de cestos de uvas, por exemplo, dez por cada homem, findos os quais terminava o trabalho.
Mas aos homens estava reservado ainda diariamente, após o jantar, a pisa das uvas. Lado a lado, abraçados e liderados pelo mandador, cortavam o lagar ao mesmo compasso: esquerdo/direito, um, dois, três, como se estivessem numa parada militar. Exigia-se um ritmo vigoroso, marcado pela disciplina para que da pisa nascesse um grande vinho. Depois de cortado o lagar, uma tarefa que durava cerca de quatro horas, cantava-se a liberdade: “Liberdade, liberdade/quem a não tem/já não é sua/quem não tem a liberdade/de sair à noite à rua/são tão bonitas as capoeiras/são mais bonitas as feiticeiras/Oh! que belo rancho da mocidade/Cantam as raparigas/Viva a liberdade!” À saída do lagar, já depois da meia noite, os homens lavavam os pés e as pernas. As mulheres esperavam-nos ansiosamente para o convívio e baile no terreiro, que se poderia prolongar até à uma e meia, duas horas da madrugada.
Seguia-se a dormida em palheiros e lagares, onde cada um (a) se cobria com uma manta, tendo uma tarimba ou um bocado de palha ou roço a sevir de colchão.
As mulheres levantavam-se primeiro, comiam uma côdea de pão como mata-bicho e levavam os cestos. Depois apareciam os homens, aconchegados com aguardente, para carregarem o primeiro cesto já cheio de uvas. Competia a cada um enganar a fome durante a manhã, trazendo ou não consigo um naco de pão. A ementa do almoço para os homens e rapazes era composta de batatas, acompanhadas de sardinhas, frango ou bacalhau e uma caneca de vinho. Às mulheres só estavam reservadas umas sardinhas simples ou azeitonas, sem direito a vinho. A ementa do jantar era quase idêntica, acrescida normalmente de caldo.
O salário diário de um homem há cinquenta anos rondava os vinte escudos (dez escudos pelo carregamento dos cestos, durante o dia, a que se somavam mais dez pelas quatro horas da pisa das uvas, durante a noite). As mulheres e rapazes até aos treze anos ganhavam cerca de oito escudos.
O rogador tinha um prémio suplementar de um escudo, ganhando, por isso, vinte e um escudos. Era o coordenador e responsável pelo cumprimento das directrizes e ordens do feitor ou dono da quinta, não carregando cestos. O tocador também não carregava, fazendo normalmente trabalhos de limpeza na adega e lagares.
A roga para a poda era constituída por homens e alguns rapazes, que ajudavam e faziam recados, aproveitando para aprender a “arte”. Partia por alturas dos santos (início de Novembro), regressando nas vésperas de Natal. Partia de novo em princípios de Janeiro, regressando definitivamente em meados de Março. Esta situação foi evoluindo, de tal forma que, nos últimos tempos, os homens regressavam sexta-feira à tarde e retornavam às segundas-feiras de manhã.

Mudança de ciclo
A reorganização empresarial, a selecção de castas, o aparecimento da vinha ao alto, a mecanização da viticultura, os lagares com robô, as adegas com inox e a aplicação de novos conhecimentos e procedimentos científicos revolucionaram o Douro vinhateiro nos últimos vinte anos, impondo novas necessidades e novos dinamismos na gestão de mão de obra.
Nas vindimas os tractores chegam a todo o lado, evitando carregamentos penosos de cestos para longas distâncias. A pisa tradicional já é rara, o que torna desnecessária a permanência de homens pela noite dentro.
As novas vias de comunicação, ligando todas as aldeias, facilitaram a mobilidade. As pessoas criaram novos hábitos nas interdependências entre a vida pessoal e profissional, não prescindindo do conforto da vida moderna à noite e ao fim de semana. Preferem jantar e dormir em suas casas, mesmo que isso acarrete percorrer grandes distâncias.
Por sua vez, tal como já fazem alguns organismos do Estado e muitas empresas, é mais fácil e barato as quintas do Douro “contratarem serviços”de acordo com as necessidades, não tendo quaisquer responsabilidades contratuais com trabalhadores.

Aparecimento de angariadores/”empreiteiros”
Estas mudanças levaram ao desaparecimento das rogas tradicionais com a permanência de ranchos de homens e mulheres ao longo de todo o ano no Douro, com mais incidência nas vindimas e na poda. Agora as necessidades de mão de obra são resolvidas entre os feitores/responsáveis pelas quintas e os angariadores/”empreiteiros”.
O montante, baseado em salários diários de homens e mulheres ou na quantidade de quilos de uvas apanhadas, é combinado com os angariadores/”empreiteiros”. Não há qualquer relação entre os donos das vinhas e os trabalhadores. São os angariadores/empreiteiros que transportam as pessoas, lhes fornecem a alimentação (se for o caso) e lhes pagam.

Importância do Douro na economia de Resende
No nosso concelho, os antigos rogadores deram origem a cerca de 15 angariadores/empreiteiros de mão de obra para o Douro. Alguns deles adquiriram diversas carrinhas para o transporte de pessoal. Sobretudo em Setembro, por alturas das vindimas é um rodopio pelas várias aldeia na recolha de trabalhadores logo pelas cinco da manhã e na volta pelas cinco/seis da tarde. São três/quatro horas extenuantes de viagem por dia, por vezes, desrespeitando a velocidade estabelecida e a lotação prevista. Não é raro a deslocação ser feita em camionetas de transporte de materiais, de caixa aberta.
O vencimento diário para os vindimadores anda à volta de 25 euros e para os carregadores de cestos ronda os 30 euros, incluindo uma refeição fornecida pelos angariadores/ “empreiteiros”. Na poda e no trabalho ao longo do ano, a diária anda à volta de 25 euros, caso inclua uma refeição, e de 30 euros a “seco”.
Calcula-se que as vindimas mobilizem cerca de 500 pessoas de todo o concelho (dos quais vários estudantes) e a poda 200. Em tarefas ao longo de grande parte do ano, andarão no Douro 130 trabalhadores. Muitos conciliam estes trabalhos com outros biscates e com o cultivo das suas terras. A maioria, ao que parece, não faz quaisquer descontos para o IRS ou para o sistema da segurança social. Deste “exército” fazem parte pessoas do rendimento social de inserção e reformados. Tudo indica que só uma minoria tem contratos de trabalho devidamente firmados.
É difícil quantificar os lucros de intermediação obtidos pelos angariadores/”empreiteiros”. Aí o segredo é a alma do negócio. Todos declaram a adequação à lei da sua actividade e o cumprimento de todos os procedimentos. “Não sou como alguns candongueiros ou mixordeiros que andam por aí”, afirmam mais ou menos assim, quando se lhes pede para aclarar o carácter reservado das linhas com que se cosem.
Devido à escassez de ofertas de emprego e à falta de outras oportunidades, o trabalho no Douro, embora envolvendo grande precariedade, continua a ser fundamental para o concelho.

*Apontamento de minha autoria, publicado no Jornal de Resende em Setembro de 2008

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