Vida dura
Venho das minhas territas, onde continuo a trabalhar. Semeio batatas e feijões, planto cebolas, alfaces, tomates e couves; apanho fruta, vindimo e faço a poda. Parar é morrer. Para cismar já me basta à noite, pois tenho de tomar uns comprimidos para dormir. Então, quer falar comigo acerca da minha vida? Tenho pena em desapontá-lo, mas eu não tenho muita coisa boa para lhe contar. Tive uma vida muita dura, sabe? Passei uns maus bocados e alguma fome. Antigamente, vivia-se com pouco. Não podíamos exigir muito, pois as dificuldades eram muitas. Até aos cinco, seis anos, morriam muitas crianças. Comia-se mal e, em caso de febres e doenças, não havia dinheiro para ir ao médico. Havia anos, por causa do codo, que queimava tudo, em que nem couves havia para fazer o caldo. Para enganar a fome fazia-se uma sopa de água com unto ou de ramas de batata, de casca de favas e até de urtigas. Sobreviver a tudo isto era um milagre. A juventude de hoje não faz a mínima ideia de quanto a vida era dura antigamente. Estou convencida que a gente nova de hoje não aguentaria. Foi habituada a ter tudo e a não fazer nada. Por isso, não se esforça como devia ser. Ao menos que estudasse para compensar os esforços dos pais. Mas não vejo isso. A malta nem estuda como devia nem ajuda os pais. Não vejo os jovens preparados para enfrentar o que aí vem. As notícias que dão na televisão não são muito animadoras. O país está muito endividado. Quiseram viver todos à grande e à francesa à custa dos outros. E claro, não havendo trabalho, nada feito. Só espero que ainda sobre dinheiro para pagar os remédios e as pensões dos mais pobres. Mas até nisso, segundo dizem, também vão mexer.
Está a ver esta encosta, por aí acima? Desde criança era percorrida a pé e descalça, quer fizesse sol, quer caísse chuva. Muitas vezes, fui à feira a Lamego descalça e carregada, com uma côdea de pão para o caminho. Em dia de festa, como a de Nossa Senhora dos Remédios, ia descalça, levando os sapatos num saco, só os calçando no destino. Mas era uma alegria, pois púnhamos a conversa em dia com os nossos vizinhos e gentes das aldeias próximas. Desde pequena aprendi com a minha mãe o quanto era a vida dura para uma mulher. Cedo vi como se amassava a farinha, se acendia o forno e se cozia o pão, e logo comecei a ajudar. Também comecei muito nova a lavar a roupa. Era preciso branquear os lençóis já gastos e tirar o surro das calças, camisas e saias, ensaboando-as bem, mexendo aqui, torcendo ali, em horas seguidas de muito esforço. Depois de posta a corar e secar, engomava-a, como agora se diz, com um ferro já velho, bufando lá para dentro de vez em quando para que as brasas avivassem.
Comia-se do que havia. Mas se aparecia algum pobre, daqueles que andavam de terra em terra e nada tinham, porque eram doentes ou já não tinham forças para trabalhar, não iam embora sem lhes oferecermos uma malga de caldo ou um naco de broa. Naquele tempo, era a miséria e não havia reformas. Tínhamos de ser uns para os outros. Alguns dormiam para aí em palheiros e em lojas.
Era muito difícil ser mãe e ter filhos. Não havia consultas nem se ia para o hospital como agora. Conheço algumas mulheres que morreram ao tê-los. Eram ajudadas por uma mulher com experiência e era o que Deus quisesse. Por isso se dizia, quando uma mulher andava grávida, “oxalá o tenhas numa boa hora”. O único luxo, que vinha a seguir, era comer uma canja e ficar na cama, não por muitos dias. No terceiro ou quarto, já tinham de se levantar para a rotina do dia a dia, sabe-se lá com que sacrifício, porque a vida não podia esperar e, se as mulheres ficavam de cama, o mundo parecia que acabava lá em casa.
Crescer com a apanha de tojo
Nasci aqui perto, em Vales, no dia 18 de Abril de 1934. Éramos seis irmãos. Felizmente, ainda cá estamos quatro vivos. O meu pai andava ao dia aqui na freguesia de Barrô, S. Martinho de Mouros, Cambres e Penajóia. A minha mãe tratava dos filhos e de uma territas, onde se semeava e plantava o essencial para não se morrer à fome.
Não fui à escola. Para os meus pais era uma perda de tempo, pois tinha de trabalhar. Tenho pena de não saber ler nem escrever. Desde pequena comecei a ir ao tojo por esta serra acima. Íamos para lá de manhã e à tarde fazer molhos, que vendíamos a quatro e cinco escudos. O tojo era arrancado à enxada e apanhado à mão. É uma planta que até dá umas flores bonitas na Primavera, mas tem muitos picos. Tínhamos de lidar com elas sem luvas ou qualquer protecção. O tojo era para a renova das vides, servindo de adubo, sendo enterrado por altura do Natal e Janeiro. Era muito procurado pelos proprietários das quintas daqui de Barrô, Penajóia e S. Martinho de Mouros. Ao longo de todo o ano, também se vendia para estrumar os campos e as lojas onde estavam os animais. E até, junto de cada casa, se fazia uma estrumeira a partir de tojos e fetos, onde as pessoas despejavam os caldeiros de urina e faziam as necessidades.
Chegávamos a ir três vezes à serra. Por volta dos oito, nove anos já era obrigada a ir por aí acima. Tomávamos o mata bicho com uma côdea e um pouco de aguardente de manhãzinha, indo a maioria das vezes o sol nascer no monte. Chegávamos a juntar-nos cinquenta pessoas. Esta vida de ir e vir ao tojo durou até casar.
Após o casamento
Casei com vinte anos e o meu marido com vinte e dois. Namorámos um ano e chegou bem para nos conhecermos. Naquele tempo, a malta nova estava ansiosa por sair de casa dos pais para ser independente e ter vida própria. Agora, é o contrário; os jovens namoram anos, trabalham e querem continuar em casa dos pais, com comida e roupa lavada.
O meu marido andou na escola e sabia ler e escrever. Foi com cerca de doze anos para a Quinta de Noval, perto do Pinhão, onde era paquete, fazendo toda a espécie de recados, e levava a merenda aos trabalhadores. Foi levado por um tio, que era lá feitor. Vinha cá de quinze em quinze dias. Depois de casado, continuou a trabalhar na mesma quinta. Eu fui viver para Cêtos para uma casa pertencente aos avós do meu marido.
Tive um filho, o único, após cinco anos de casada. Mas era difícil endireitar a vida. Por isso, em 1968, o meu marido foi para França, juntamente com outros homens daqui. Pagou vinte e cinco contos a um angariador, que depois fez as contas com os passadores. Partiu com um saco às costas e nada mais em direcção à fronteira espanhola, onde teve de passar a salto para não ser visto pela guarda. Depois, meteu-se novamente no comboio até junto da fronteira francesa. Lá foi enfiado numa carrinha e andou por lá às voltas para enganar a polícia, tendo sido deixado numa montanha. Depois de subir muito e rapado muito frio, conseguiu chegar a terras de França.
Mesmo assim teve sorte. O meu marido contava-me que muitos não chegavam ao destino, pois eram enganados pelos passadores, que os deixavam abandonados, morrendo de fome e de frio ou afogados, vindo ainda alguns a cair pelos pedregulhos abaixo. Outros eram mortos ou apanhados pela polícia, que os recambiavam para cá e os castigavam.
Foram todos em busca de uma vida melhor, deixando a mulher e filhos, e acontecia-lhes isto. O meu marido esteve por lá seis anos, sempre na agricultura. Mas aquilo não dava assim tanto dinheiro. Tornou para junto de nós, indo ganhar o dia nas terras. Morreu já lá vão treze anos.
O meu filho também esteve emigrado uns anos juntamente com a mulher na Suíça. Tem uma barbearia em Resende e lá se vai governando. Vivo aqui nesta casa com ele e com a minha nora. Tenho dois netos.
Antigamente, era pior. Há noites em que me custa mais adormecer, pois começo a cismar e tenho de tomar um comprimido. De resto, tomara eu cá andar mais uns anos. A minha nora lá vai tendo paciência para me aturar e trata-me bem.
Tristezas não pagam dívidas
Mas nem tudo era mau. Quando íamos para as festas e feiras, era uma alegria. E mesmo no trabalho, quando nos juntávamos, era costume começarmos a cantar. E as pessoas ajudavam-se umas às outras naquilo que podiam.
Aos domingos à tarde, quando era nova, ia aos bailaricos, que eram organizados pelo Adriano da venda, aqui em Cêtos. A música vinha da grafonola. Ainda me recordo de ver o dono da venda a dar à manivela, punha um disco, baixava a cabeça da agulha e a maquineta lá tocava. Quando a corda começava a faltar, a voz ficava cada vez mais fanhosa e acabava. Outras vezes, arranjava-se um tocador de concertina ou outro instrumento.
Havia ainda as festas religiosas da freguesia e da região. E cheguei a ir algumas vezes à festa de Nossa Senhora dos Remédios. Levava uma merenda para aguentar a caminhada de ida e volta. Em Junho, divertíamo-nos na noitada de S. João. A gente nova fazia fogueiras nas eiras com pinhas e alecrim. Os rapazes e raparigas juntavam-se, saltando às fogueiras. Por esses dias, os rapazes lá conseguiam arranjar dinheiro para comprar bombas e sobretudo “rabioscas”, que atiravam para o meio das pernas das raparigas. E faziam muitas partidas durante a noite.
Um outro divertimento acontecia pelo Carnaval. Os homens faziam a comadre e as mulheres o compadre, que ficavam escondidos. No domingo gordo e na segunda e terça-feira de Entrudo faziam-se grandes bailaricos e corria-se o compadre e a comadre pelos caminhos. As raparigas levavam “em procissão” o compadre que tinham feito, sempre aos gritos, mas atentas aos homens, que faziam tudo para o roubar. Os homens faziam o mesmo, mas por outros caminhos, levando a comadre.
Durante o carnaval, as raparigas tinham de estar muito atentas. É que os rapazes apareciam repentinamente para darem “mantas em seco” às raparigas. Às desprevenidas, depois de as agarrarem, um pegava-lhe pela cabeça e outro pelos pés, e batendo-lhe com o cu no chão, diziam: “Um…dois…três…Um pró pai, outro prá mãe e outro pra quem o fez…”. Se quer acreditar, eu nesses dias evitava sair de casa e nunca fui apanhada.
Ficam-nos estas recordações de coisas que eram uma alegria. Às vezes, penso que antigamente sofria-se mais e até se morria mais cedo, mas as pessoas pareciam mais comunicativas. Não se pode ter tudo. Gostava que houvesse mais gente nova nas aldeias para animar isto. Custa-me pensar que estes campo irão ficar ao abandono e as casas desabitadas. Quem sabe se isto não irá levar uma volta?
Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
Venho das minhas territas, onde continuo a trabalhar. Semeio batatas e feijões, planto cebolas, alfaces, tomates e couves; apanho fruta, vindimo e faço a poda. Parar é morrer. Para cismar já me basta à noite, pois tenho de tomar uns comprimidos para dormir. Então, quer falar comigo acerca da minha vida? Tenho pena em desapontá-lo, mas eu não tenho muita coisa boa para lhe contar. Tive uma vida muita dura, sabe? Passei uns maus bocados e alguma fome. Antigamente, vivia-se com pouco. Não podíamos exigir muito, pois as dificuldades eram muitas. Até aos cinco, seis anos, morriam muitas crianças. Comia-se mal e, em caso de febres e doenças, não havia dinheiro para ir ao médico. Havia anos, por causa do codo, que queimava tudo, em que nem couves havia para fazer o caldo. Para enganar a fome fazia-se uma sopa de água com unto ou de ramas de batata, de casca de favas e até de urtigas. Sobreviver a tudo isto era um milagre. A juventude de hoje não faz a mínima ideia de quanto a vida era dura antigamente. Estou convencida que a gente nova de hoje não aguentaria. Foi habituada a ter tudo e a não fazer nada. Por isso, não se esforça como devia ser. Ao menos que estudasse para compensar os esforços dos pais. Mas não vejo isso. A malta nem estuda como devia nem ajuda os pais. Não vejo os jovens preparados para enfrentar o que aí vem. As notícias que dão na televisão não são muito animadoras. O país está muito endividado. Quiseram viver todos à grande e à francesa à custa dos outros. E claro, não havendo trabalho, nada feito. Só espero que ainda sobre dinheiro para pagar os remédios e as pensões dos mais pobres. Mas até nisso, segundo dizem, também vão mexer.
Está a ver esta encosta, por aí acima? Desde criança era percorrida a pé e descalça, quer fizesse sol, quer caísse chuva. Muitas vezes, fui à feira a Lamego descalça e carregada, com uma côdea de pão para o caminho. Em dia de festa, como a de Nossa Senhora dos Remédios, ia descalça, levando os sapatos num saco, só os calçando no destino. Mas era uma alegria, pois púnhamos a conversa em dia com os nossos vizinhos e gentes das aldeias próximas. Desde pequena aprendi com a minha mãe o quanto era a vida dura para uma mulher. Cedo vi como se amassava a farinha, se acendia o forno e se cozia o pão, e logo comecei a ajudar. Também comecei muito nova a lavar a roupa. Era preciso branquear os lençóis já gastos e tirar o surro das calças, camisas e saias, ensaboando-as bem, mexendo aqui, torcendo ali, em horas seguidas de muito esforço. Depois de posta a corar e secar, engomava-a, como agora se diz, com um ferro já velho, bufando lá para dentro de vez em quando para que as brasas avivassem.
Comia-se do que havia. Mas se aparecia algum pobre, daqueles que andavam de terra em terra e nada tinham, porque eram doentes ou já não tinham forças para trabalhar, não iam embora sem lhes oferecermos uma malga de caldo ou um naco de broa. Naquele tempo, era a miséria e não havia reformas. Tínhamos de ser uns para os outros. Alguns dormiam para aí em palheiros e em lojas.
Era muito difícil ser mãe e ter filhos. Não havia consultas nem se ia para o hospital como agora. Conheço algumas mulheres que morreram ao tê-los. Eram ajudadas por uma mulher com experiência e era o que Deus quisesse. Por isso se dizia, quando uma mulher andava grávida, “oxalá o tenhas numa boa hora”. O único luxo, que vinha a seguir, era comer uma canja e ficar na cama, não por muitos dias. No terceiro ou quarto, já tinham de se levantar para a rotina do dia a dia, sabe-se lá com que sacrifício, porque a vida não podia esperar e, se as mulheres ficavam de cama, o mundo parecia que acabava lá em casa.
Crescer com a apanha de tojo
Nasci aqui perto, em Vales, no dia 18 de Abril de 1934. Éramos seis irmãos. Felizmente, ainda cá estamos quatro vivos. O meu pai andava ao dia aqui na freguesia de Barrô, S. Martinho de Mouros, Cambres e Penajóia. A minha mãe tratava dos filhos e de uma territas, onde se semeava e plantava o essencial para não se morrer à fome.
Não fui à escola. Para os meus pais era uma perda de tempo, pois tinha de trabalhar. Tenho pena de não saber ler nem escrever. Desde pequena comecei a ir ao tojo por esta serra acima. Íamos para lá de manhã e à tarde fazer molhos, que vendíamos a quatro e cinco escudos. O tojo era arrancado à enxada e apanhado à mão. É uma planta que até dá umas flores bonitas na Primavera, mas tem muitos picos. Tínhamos de lidar com elas sem luvas ou qualquer protecção. O tojo era para a renova das vides, servindo de adubo, sendo enterrado por altura do Natal e Janeiro. Era muito procurado pelos proprietários das quintas daqui de Barrô, Penajóia e S. Martinho de Mouros. Ao longo de todo o ano, também se vendia para estrumar os campos e as lojas onde estavam os animais. E até, junto de cada casa, se fazia uma estrumeira a partir de tojos e fetos, onde as pessoas despejavam os caldeiros de urina e faziam as necessidades.
Chegávamos a ir três vezes à serra. Por volta dos oito, nove anos já era obrigada a ir por aí acima. Tomávamos o mata bicho com uma côdea e um pouco de aguardente de manhãzinha, indo a maioria das vezes o sol nascer no monte. Chegávamos a juntar-nos cinquenta pessoas. Esta vida de ir e vir ao tojo durou até casar.
Após o casamento
Casei com vinte anos e o meu marido com vinte e dois. Namorámos um ano e chegou bem para nos conhecermos. Naquele tempo, a malta nova estava ansiosa por sair de casa dos pais para ser independente e ter vida própria. Agora, é o contrário; os jovens namoram anos, trabalham e querem continuar em casa dos pais, com comida e roupa lavada.
O meu marido andou na escola e sabia ler e escrever. Foi com cerca de doze anos para a Quinta de Noval, perto do Pinhão, onde era paquete, fazendo toda a espécie de recados, e levava a merenda aos trabalhadores. Foi levado por um tio, que era lá feitor. Vinha cá de quinze em quinze dias. Depois de casado, continuou a trabalhar na mesma quinta. Eu fui viver para Cêtos para uma casa pertencente aos avós do meu marido.
Tive um filho, o único, após cinco anos de casada. Mas era difícil endireitar a vida. Por isso, em 1968, o meu marido foi para França, juntamente com outros homens daqui. Pagou vinte e cinco contos a um angariador, que depois fez as contas com os passadores. Partiu com um saco às costas e nada mais em direcção à fronteira espanhola, onde teve de passar a salto para não ser visto pela guarda. Depois, meteu-se novamente no comboio até junto da fronteira francesa. Lá foi enfiado numa carrinha e andou por lá às voltas para enganar a polícia, tendo sido deixado numa montanha. Depois de subir muito e rapado muito frio, conseguiu chegar a terras de França.
Mesmo assim teve sorte. O meu marido contava-me que muitos não chegavam ao destino, pois eram enganados pelos passadores, que os deixavam abandonados, morrendo de fome e de frio ou afogados, vindo ainda alguns a cair pelos pedregulhos abaixo. Outros eram mortos ou apanhados pela polícia, que os recambiavam para cá e os castigavam.
Foram todos em busca de uma vida melhor, deixando a mulher e filhos, e acontecia-lhes isto. O meu marido esteve por lá seis anos, sempre na agricultura. Mas aquilo não dava assim tanto dinheiro. Tornou para junto de nós, indo ganhar o dia nas terras. Morreu já lá vão treze anos.
O meu filho também esteve emigrado uns anos juntamente com a mulher na Suíça. Tem uma barbearia em Resende e lá se vai governando. Vivo aqui nesta casa com ele e com a minha nora. Tenho dois netos.
Antigamente, era pior. Há noites em que me custa mais adormecer, pois começo a cismar e tenho de tomar um comprimido. De resto, tomara eu cá andar mais uns anos. A minha nora lá vai tendo paciência para me aturar e trata-me bem.
Tristezas não pagam dívidas
Mas nem tudo era mau. Quando íamos para as festas e feiras, era uma alegria. E mesmo no trabalho, quando nos juntávamos, era costume começarmos a cantar. E as pessoas ajudavam-se umas às outras naquilo que podiam.
Aos domingos à tarde, quando era nova, ia aos bailaricos, que eram organizados pelo Adriano da venda, aqui em Cêtos. A música vinha da grafonola. Ainda me recordo de ver o dono da venda a dar à manivela, punha um disco, baixava a cabeça da agulha e a maquineta lá tocava. Quando a corda começava a faltar, a voz ficava cada vez mais fanhosa e acabava. Outras vezes, arranjava-se um tocador de concertina ou outro instrumento.
Havia ainda as festas religiosas da freguesia e da região. E cheguei a ir algumas vezes à festa de Nossa Senhora dos Remédios. Levava uma merenda para aguentar a caminhada de ida e volta. Em Junho, divertíamo-nos na noitada de S. João. A gente nova fazia fogueiras nas eiras com pinhas e alecrim. Os rapazes e raparigas juntavam-se, saltando às fogueiras. Por esses dias, os rapazes lá conseguiam arranjar dinheiro para comprar bombas e sobretudo “rabioscas”, que atiravam para o meio das pernas das raparigas. E faziam muitas partidas durante a noite.
Um outro divertimento acontecia pelo Carnaval. Os homens faziam a comadre e as mulheres o compadre, que ficavam escondidos. No domingo gordo e na segunda e terça-feira de Entrudo faziam-se grandes bailaricos e corria-se o compadre e a comadre pelos caminhos. As raparigas levavam “em procissão” o compadre que tinham feito, sempre aos gritos, mas atentas aos homens, que faziam tudo para o roubar. Os homens faziam o mesmo, mas por outros caminhos, levando a comadre.
Durante o carnaval, as raparigas tinham de estar muito atentas. É que os rapazes apareciam repentinamente para darem “mantas em seco” às raparigas. Às desprevenidas, depois de as agarrarem, um pegava-lhe pela cabeça e outro pelos pés, e batendo-lhe com o cu no chão, diziam: “Um…dois…três…Um pró pai, outro prá mãe e outro pra quem o fez…”. Se quer acreditar, eu nesses dias evitava sair de casa e nunca fui apanhada.
Ficam-nos estas recordações de coisas que eram uma alegria. Às vezes, penso que antigamente sofria-se mais e até se morria mais cedo, mas as pessoas pareciam mais comunicativas. Não se pode ter tudo. Gostava que houvesse mais gente nova nas aldeias para animar isto. Custa-me pensar que estes campo irão ficar ao abandono e as casas desabitadas. Quem sabe se isto não irá levar uma volta?
Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Novembro de 2010
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