Tempos de infância e juventude
Nasci aqui na Granja, no dia 14 de Novembro de 1920. Éramos nove irmãos. Ainda estamos cinco vivos. Falando com franqueza, nunca pensei viver tantos anos e, por isso, dou graças. Antigamente, a esperança de vida era baixa. Posso considerar-me, pois, um homem de sorte. Mas saio a boa cepa, pois o meu pai morreu com 82 anos; a minha mãe é que morreu mais nova, com 64. Era difícil prever uma vida muito longa com tantos filhos.
O meu pai sabia ler e escrever bem. Fabricava terras e negociava gado. Trazia sete, oito vacas nas terras, um grande rebanho de ovelhas e cabras e matava três porcos. Vivíamos razoavelmente bem para a época. A minha mãe era doméstica, tratava dos filhos; só sabia escrever o nome.
Nasci numa casa no meio da aldeia. Esta casa, onde estamos agora, comprei-a aos meus irmãos. Passou-se aqui um episódio de que me recordo muito bem. A casa estava a acabar de ser construída, mas já cá vivia uma minha avó e a minha madrinha. Deveria ter dois anos e meio a três anos, quando um dia a minha avó me trouxe para aqui para a desmama. Senti tanta falta da minha mãe que fugi à procura dela na casa lá de baixo, mas ela escondeu-se, e a criada trouxe-me outra vez à força cá para cima. Não imagina a gritaria; berrava como um cabrito.
Andei aqui na escola da Granja, que ficava numa casa emprestada pelo meu pai. Tirei só a 3.ª classe, porque a professora foi transferida para Felgueiras e nunca foi substituída. Mas foi uma terceira como deve ser.
Depois de deixada a escola, passei a ajudar o meu pai nas lides da terra, acompanhando-o às feiras para vender e comprar gado. Também levava os animais a pastar pelos campos e pela serra.
Em Moçambique
Depois de casar com a Henriqueta, de Ovadas de Baixo, que conheci nas idas à igreja e nas festas que aí se realizavam, fomos viver para casa dos meus pais. A minha mulher tinha um irmão em Moçambique, que me fez despontar a vontade de dar um novo rumo à vida. Pensei que lá haveria outras oportunidades que não deveria desperdiçar. O meu cunhado tratou de tudo: da viagem e da carta de chamada. Deixei cá a mulher e um filho de quinze dias, que infelizmente viria a morrer por volta dos dois anos. Tinha então 22 anos. Estive lá quinze anos sozinho.
O meu primeiro trabalho foi o de praticante de via dos Caminhos de Ferro, na então Lourenço Marques, hoje Maputo. Quem mo arranjou foi o Dr. Aires Pinto Ribeiro, Director dos Serviços de Saúde de Moçambique, que era amigo do meu pai. Entretanto, comecei a estudar à noite para terminar a 4.ª classe, o que aconteceu rapidamente. Passado meio ano, mandaram-me para o norte, mais propriamente para Tete. Preparei tudo e fui-me despedir do Dr. Aires Ribeiro, que, admirado perante esta mudança repentina, me disse: “tu não vais nada para Tete” e pegou no telefone. Feito o telefonema, acrescentou: “amanhã vais ter com o Director dos Correios de Lourenço Marques, que se chama Francisco Paulo Menano, que tem lá uma surpresa para ti. E assim foi. Comecei como distribuidor interino, continuando na capital. Depois, sempre através de concurso com várias dezenas de concorrentes, passei sucessivamente para distribuidor, tendo ficado em 6.º lugar; a seguir para distribuidor de primeira, tendo ficado em 3.º lugar e, por último, concorri para a fiscalização, tendo ficado em 1.º lugar.
Quando me encontrava em acções de fiscalização, por vezes aparecia o Director Geral dos Correios, Eng. Raul Coelho Lopes Duarte, que sabia da qualidade do meu trabalho, e ao ver-me, chegou a desabafar para os meus superiores: “eu bem queria abrir as portas a este homem, mas não consigo, pois é preciso ter o canudo”. Abriu então vaga para chefiar a 8.ª Secção da Estação Central, mas era preciso ter o antigo 7.º e eu só tinha a 4.ª classe. Para ocupar estas funções enquanto não abria concurso, fui designado chefe interino. Entretanto, foram abrindo vagas para 2.º oficial e 1.º oficial a que concorri. Lembro-me de, em mais de 300 concorrentes, ter ficado em 2.º lugar neste último concurso, muitos deles habilitados com o antigo 7.º ano. E como sou um homem de sorte, abriu também concurso para a Chefia da 8.ª Secção, em que uma das condições que possibilitava o acesso, para além de ter o 7.º ano, que eu não possuía, era a experiência do lugar, que me assentava que nem uma luva. Pude assim continuar como Chefe da dita Secção, o que me proporcionava mais algum dinheiro. E como não vim para Moçambique propriamente para passar férias, pouco tempo depois de entrar nos Correios, tornei-me também bombeiro e fiscal/controlador de bilhetes nos cinemas Estúdio e Dica.
Após um ano de férias em Portugal
Passados dez anos desde que cheguei a Moçambique, quando era 2.º oficial, vim de férias à então chamada Metrópole. Foi um ano de que guardo gratas recordações. Pude revisitar estas terras de que tanto gosto e, sobretudo, reencontrar a minha mulher, família e amigos. A pé e a cavalo tive oportunidade de ir várias vezes a Lamego, Resende e aldeias vizinhas e percorrer as serranias, que conheço como as minhas mãos.
De volta a Moçambique, a minha mulher acompanhou-me. Continuei a trabalhar nos Correios e a fazer umas horas como bombeiro e como fiscal nos cinemas. A minha mulher trabalhou sempre como doméstica. Entretanto, nasceu um filho, que viria a ser o único, no qual tudo investimos, procurando proporcionar-lhe a melhor educação. É hoje advogado em Lisboa (Dr. Américo Isidro Castro Botelho). Fez o liceu em Lourenço Marques, tendo a sua vocação sido definida logo no exame de admissão pelo Director de Instrução Pública. Ao notar a forma como falava e como sabia responder a todas as perguntas que lhe foram colocadas na prova oral, aquele responsável sentenciou: “ tens de ir para advogado; será aí o teu lugar certo”. E assim foi com alguma pena nossa, pois teve de vir estudar mais tarde para cá, para a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Viemos cá uma segunda vez de férias. Era a chamada licença graciosa, que podia ser gozada, em média de quatro em quatro anos na Metrópole. Era a vantagem de se trabalhar para o Estado. Tínhamos as viagens pagas, continuando a receber uma parte dos vencimentos durante cerca de meio ano. Tive até oportunidade de vir cá mais vezes.
O chefe dos correios disse-me várias vezes que arranjava trabalho para a minha mulher, mas eu preferi sempre que ela tratasse da casa e da educação do filho. É tarefa tão digna como qualquer outro trabalho ou talvez mais. Ainda não percebi por que é que uma mulher não se pode realizar trabalhando em casa e ajudando na educação dos filhos, desde que o marido tenha meios para sustentar o lar.
Regresso após o 25 de Abril
Quando se deu o 25 de Abril, previ que iriam acontecer alterações na vida dos portugueses a viver em Moçambique. Não era preciso ser muito inteligente para se perceber que muitos privilégios iriam acabar, o que não era o meu caso, pois vivia do meu trabalho. Muitos lugares, sobretudo os que não exigiam grande especialização, como na função pública, estradas, caminhos de ferro, portos e mesmo correios, iriam logicamente ser ocupados pelos negros num Moçambique independente. Foi isto que eu previ. Por isso, tratei de me reformar e vir o mais rapidamente possível. Ainda consegui mandar para aqui alguma tralha, mas pouca, porque começaram logo a pôr muitos obstáculos. Vim antes dos acordos de Lusaka, assinados em 7 de Setembro de 1974, que fixou as condições para a independência, tendo Portugal de aceitar as imposições de Samora Machel. Felizmente já cá estava quando aconteceram graves distúrbios em que foram mortos alguns brancos e saqueadas várias lojas na zona de Lourenço Marques, na sequência da ocupação do Rádio Clube por alguns aventureiros brancos. A propósito, peço que escreva que eu sempre convivi com todos e guardo boas recordações daqueles com quem trabalhei, fossem brancos ou pretos.
Deixei lá, em Moçambique, um prédio com seis apartamentos, duas lojas e dois armazéns. Ficaram alugados, mas depois foram nacionalizados. Todas as casas, como sabe, não habitadas pelos próprios proprietários reverteram a favor do Estado moçambicano. O meu filho deslocou-se lá, aqui há uns anos, e foi pedir esclarecimentos, mas disseram-lhe o seguinte: “se quiserem o prédio de volta, venham para cá habitá-lo que nós devolvemo-lo”. Ficava na então Av. Paiva de Andrade, n.º 999.
Em Ovadas
Recordo-me muitas vezes da vida que levava em Lourenço Marques. Lá era mais conhecido que o Borda d’Água. Embora trabalhasse bastante, gostava daquela maneira de viver. Fazíamos amigos com facilidade e as pessoas eram muito abertas e alegres. Deixei lá muitos amigos. Tenho trinta e nove afilhados espalhados pelo mundo, a maioria dos quais em Moçambique. Lá querendo trabalhar, não faltava nada. Aqui as pessoas são mais fechadas e desconfiadas, talvez devido às dificuldades por que passaram.
Sinto-me aqui bem. Gosto muito desta terra, que palmilhei em pequeno. Esta encosta de Ovadas é muito bonita. Entre herança e compras com o dinheiro que fui juntando, tenho duas quintas em Miomães, de bastante rendimento, onde tenho dois caseiros. Aqui, na Granja, tenho terras que já deram lugar a três caseiros, que chegaram a criar 15 vacas. Agora, ninguém está interessado nisto. Não consigo que venham trabalhar, nem que fosse de graça. Acho que as pessoas habituaram-se ao rendimento mínimo, pago pelo Estado, e não lhes interessa trabalhar.
Quando vim, ainda levei uma vida boa. Comprava e vendia gado para os caseiros e andava por todo o lado. Retomei a minha actividade de caçador de que sempre gostei. Ainda fizemos caminhadas por esses montes à procura de coelhos e perdizes, que era um pretexto para conviver. Agora, tenho de ficar mais por casa, pois não posso deixar a minha mulher sozinha, como vê. Há uns tempos sentiu uma dor na cabeça, talvez tivesse um derrame cerebral, e nunca mais foi a mesma. Fala, mas não se lembra de nada. Sou eu que tenho de fazer a comida e tratar da casa. Vem cá uma rapariga, que é minha afilhada, limpar a casa e passar a roupa. Para distrair a minha mulher vamos a todas as feiras a Resende. Ando lá com ela pela mão e depois levo-a a comer. Quem conduz o meu carro é um irmão meu que vive aqui na Granja, e que já viveu no Brasil, onde teve um táxi. Tenho receio de conduzir. O meu filho telefona-me todos os dias. Vem cá quinzenalmente com a mulher. Nessas alturas, escuso de me preocupar, porque eles tomam conta da cozinha. Gosto muito de os cá ver assim como os meus netos.
Gostei de o conhecer e de saber que é de Paus e que conhece o Antoninho, casado com a Adelinha, de Moumiz. O António (Dias Pinto Alberto) é meu cunhado, irmão da minha mulher. Também esteve em Moçambique, onde trabalhou nos caminhos de ferro. O mundo é pequeno. E agora vou mostrar-lhe a minha casa e, no fim, tem de comer um bocado de presunto caseiro e provar o meu vinho.
Nasci aqui na Granja, no dia 14 de Novembro de 1920. Éramos nove irmãos. Ainda estamos cinco vivos. Falando com franqueza, nunca pensei viver tantos anos e, por isso, dou graças. Antigamente, a esperança de vida era baixa. Posso considerar-me, pois, um homem de sorte. Mas saio a boa cepa, pois o meu pai morreu com 82 anos; a minha mãe é que morreu mais nova, com 64. Era difícil prever uma vida muito longa com tantos filhos.
O meu pai sabia ler e escrever bem. Fabricava terras e negociava gado. Trazia sete, oito vacas nas terras, um grande rebanho de ovelhas e cabras e matava três porcos. Vivíamos razoavelmente bem para a época. A minha mãe era doméstica, tratava dos filhos; só sabia escrever o nome.
Nasci numa casa no meio da aldeia. Esta casa, onde estamos agora, comprei-a aos meus irmãos. Passou-se aqui um episódio de que me recordo muito bem. A casa estava a acabar de ser construída, mas já cá vivia uma minha avó e a minha madrinha. Deveria ter dois anos e meio a três anos, quando um dia a minha avó me trouxe para aqui para a desmama. Senti tanta falta da minha mãe que fugi à procura dela na casa lá de baixo, mas ela escondeu-se, e a criada trouxe-me outra vez à força cá para cima. Não imagina a gritaria; berrava como um cabrito.
Andei aqui na escola da Granja, que ficava numa casa emprestada pelo meu pai. Tirei só a 3.ª classe, porque a professora foi transferida para Felgueiras e nunca foi substituída. Mas foi uma terceira como deve ser.
Depois de deixada a escola, passei a ajudar o meu pai nas lides da terra, acompanhando-o às feiras para vender e comprar gado. Também levava os animais a pastar pelos campos e pela serra.
Em Moçambique
Depois de casar com a Henriqueta, de Ovadas de Baixo, que conheci nas idas à igreja e nas festas que aí se realizavam, fomos viver para casa dos meus pais. A minha mulher tinha um irmão em Moçambique, que me fez despontar a vontade de dar um novo rumo à vida. Pensei que lá haveria outras oportunidades que não deveria desperdiçar. O meu cunhado tratou de tudo: da viagem e da carta de chamada. Deixei cá a mulher e um filho de quinze dias, que infelizmente viria a morrer por volta dos dois anos. Tinha então 22 anos. Estive lá quinze anos sozinho.
O meu primeiro trabalho foi o de praticante de via dos Caminhos de Ferro, na então Lourenço Marques, hoje Maputo. Quem mo arranjou foi o Dr. Aires Pinto Ribeiro, Director dos Serviços de Saúde de Moçambique, que era amigo do meu pai. Entretanto, comecei a estudar à noite para terminar a 4.ª classe, o que aconteceu rapidamente. Passado meio ano, mandaram-me para o norte, mais propriamente para Tete. Preparei tudo e fui-me despedir do Dr. Aires Ribeiro, que, admirado perante esta mudança repentina, me disse: “tu não vais nada para Tete” e pegou no telefone. Feito o telefonema, acrescentou: “amanhã vais ter com o Director dos Correios de Lourenço Marques, que se chama Francisco Paulo Menano, que tem lá uma surpresa para ti. E assim foi. Comecei como distribuidor interino, continuando na capital. Depois, sempre através de concurso com várias dezenas de concorrentes, passei sucessivamente para distribuidor, tendo ficado em 6.º lugar; a seguir para distribuidor de primeira, tendo ficado em 3.º lugar e, por último, concorri para a fiscalização, tendo ficado em 1.º lugar.
Quando me encontrava em acções de fiscalização, por vezes aparecia o Director Geral dos Correios, Eng. Raul Coelho Lopes Duarte, que sabia da qualidade do meu trabalho, e ao ver-me, chegou a desabafar para os meus superiores: “eu bem queria abrir as portas a este homem, mas não consigo, pois é preciso ter o canudo”. Abriu então vaga para chefiar a 8.ª Secção da Estação Central, mas era preciso ter o antigo 7.º e eu só tinha a 4.ª classe. Para ocupar estas funções enquanto não abria concurso, fui designado chefe interino. Entretanto, foram abrindo vagas para 2.º oficial e 1.º oficial a que concorri. Lembro-me de, em mais de 300 concorrentes, ter ficado em 2.º lugar neste último concurso, muitos deles habilitados com o antigo 7.º ano. E como sou um homem de sorte, abriu também concurso para a Chefia da 8.ª Secção, em que uma das condições que possibilitava o acesso, para além de ter o 7.º ano, que eu não possuía, era a experiência do lugar, que me assentava que nem uma luva. Pude assim continuar como Chefe da dita Secção, o que me proporcionava mais algum dinheiro. E como não vim para Moçambique propriamente para passar férias, pouco tempo depois de entrar nos Correios, tornei-me também bombeiro e fiscal/controlador de bilhetes nos cinemas Estúdio e Dica.
Após um ano de férias em Portugal
Passados dez anos desde que cheguei a Moçambique, quando era 2.º oficial, vim de férias à então chamada Metrópole. Foi um ano de que guardo gratas recordações. Pude revisitar estas terras de que tanto gosto e, sobretudo, reencontrar a minha mulher, família e amigos. A pé e a cavalo tive oportunidade de ir várias vezes a Lamego, Resende e aldeias vizinhas e percorrer as serranias, que conheço como as minhas mãos.
De volta a Moçambique, a minha mulher acompanhou-me. Continuei a trabalhar nos Correios e a fazer umas horas como bombeiro e como fiscal nos cinemas. A minha mulher trabalhou sempre como doméstica. Entretanto, nasceu um filho, que viria a ser o único, no qual tudo investimos, procurando proporcionar-lhe a melhor educação. É hoje advogado em Lisboa (Dr. Américo Isidro Castro Botelho). Fez o liceu em Lourenço Marques, tendo a sua vocação sido definida logo no exame de admissão pelo Director de Instrução Pública. Ao notar a forma como falava e como sabia responder a todas as perguntas que lhe foram colocadas na prova oral, aquele responsável sentenciou: “ tens de ir para advogado; será aí o teu lugar certo”. E assim foi com alguma pena nossa, pois teve de vir estudar mais tarde para cá, para a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Viemos cá uma segunda vez de férias. Era a chamada licença graciosa, que podia ser gozada, em média de quatro em quatro anos na Metrópole. Era a vantagem de se trabalhar para o Estado. Tínhamos as viagens pagas, continuando a receber uma parte dos vencimentos durante cerca de meio ano. Tive até oportunidade de vir cá mais vezes.
O chefe dos correios disse-me várias vezes que arranjava trabalho para a minha mulher, mas eu preferi sempre que ela tratasse da casa e da educação do filho. É tarefa tão digna como qualquer outro trabalho ou talvez mais. Ainda não percebi por que é que uma mulher não se pode realizar trabalhando em casa e ajudando na educação dos filhos, desde que o marido tenha meios para sustentar o lar.
Regresso após o 25 de Abril
Quando se deu o 25 de Abril, previ que iriam acontecer alterações na vida dos portugueses a viver em Moçambique. Não era preciso ser muito inteligente para se perceber que muitos privilégios iriam acabar, o que não era o meu caso, pois vivia do meu trabalho. Muitos lugares, sobretudo os que não exigiam grande especialização, como na função pública, estradas, caminhos de ferro, portos e mesmo correios, iriam logicamente ser ocupados pelos negros num Moçambique independente. Foi isto que eu previ. Por isso, tratei de me reformar e vir o mais rapidamente possível. Ainda consegui mandar para aqui alguma tralha, mas pouca, porque começaram logo a pôr muitos obstáculos. Vim antes dos acordos de Lusaka, assinados em 7 de Setembro de 1974, que fixou as condições para a independência, tendo Portugal de aceitar as imposições de Samora Machel. Felizmente já cá estava quando aconteceram graves distúrbios em que foram mortos alguns brancos e saqueadas várias lojas na zona de Lourenço Marques, na sequência da ocupação do Rádio Clube por alguns aventureiros brancos. A propósito, peço que escreva que eu sempre convivi com todos e guardo boas recordações daqueles com quem trabalhei, fossem brancos ou pretos.
Deixei lá, em Moçambique, um prédio com seis apartamentos, duas lojas e dois armazéns. Ficaram alugados, mas depois foram nacionalizados. Todas as casas, como sabe, não habitadas pelos próprios proprietários reverteram a favor do Estado moçambicano. O meu filho deslocou-se lá, aqui há uns anos, e foi pedir esclarecimentos, mas disseram-lhe o seguinte: “se quiserem o prédio de volta, venham para cá habitá-lo que nós devolvemo-lo”. Ficava na então Av. Paiva de Andrade, n.º 999.
Em Ovadas
Recordo-me muitas vezes da vida que levava em Lourenço Marques. Lá era mais conhecido que o Borda d’Água. Embora trabalhasse bastante, gostava daquela maneira de viver. Fazíamos amigos com facilidade e as pessoas eram muito abertas e alegres. Deixei lá muitos amigos. Tenho trinta e nove afilhados espalhados pelo mundo, a maioria dos quais em Moçambique. Lá querendo trabalhar, não faltava nada. Aqui as pessoas são mais fechadas e desconfiadas, talvez devido às dificuldades por que passaram.
Sinto-me aqui bem. Gosto muito desta terra, que palmilhei em pequeno. Esta encosta de Ovadas é muito bonita. Entre herança e compras com o dinheiro que fui juntando, tenho duas quintas em Miomães, de bastante rendimento, onde tenho dois caseiros. Aqui, na Granja, tenho terras que já deram lugar a três caseiros, que chegaram a criar 15 vacas. Agora, ninguém está interessado nisto. Não consigo que venham trabalhar, nem que fosse de graça. Acho que as pessoas habituaram-se ao rendimento mínimo, pago pelo Estado, e não lhes interessa trabalhar.
Quando vim, ainda levei uma vida boa. Comprava e vendia gado para os caseiros e andava por todo o lado. Retomei a minha actividade de caçador de que sempre gostei. Ainda fizemos caminhadas por esses montes à procura de coelhos e perdizes, que era um pretexto para conviver. Agora, tenho de ficar mais por casa, pois não posso deixar a minha mulher sozinha, como vê. Há uns tempos sentiu uma dor na cabeça, talvez tivesse um derrame cerebral, e nunca mais foi a mesma. Fala, mas não se lembra de nada. Sou eu que tenho de fazer a comida e tratar da casa. Vem cá uma rapariga, que é minha afilhada, limpar a casa e passar a roupa. Para distrair a minha mulher vamos a todas as feiras a Resende. Ando lá com ela pela mão e depois levo-a a comer. Quem conduz o meu carro é um irmão meu que vive aqui na Granja, e que já viveu no Brasil, onde teve um táxi. Tenho receio de conduzir. O meu filho telefona-me todos os dias. Vem cá quinzenalmente com a mulher. Nessas alturas, escuso de me preocupar, porque eles tomam conta da cozinha. Gosto muito de os cá ver assim como os meus netos.
Gostei de o conhecer e de saber que é de Paus e que conhece o Antoninho, casado com a Adelinha, de Moumiz. O António (Dias Pinto Alberto) é meu cunhado, irmão da minha mulher. Também esteve em Moçambique, onde trabalhou nos caminhos de ferro. O mundo é pequeno. E agora vou mostrar-lhe a minha casa e, no fim, tem de comer um bocado de presunto caseiro e provar o meu vinho.
Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Dezembro de 2010
*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Dezembro de 2010
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