terça-feira, 1 de março de 2011

A “falacheira” de São Brás/O dia das falachas*

Quem chegar a Resende e perguntar pela “falacheira” de Cimo de Resende, todos indicam a Maria Rosa Teixeira, ou a Dona Rosa, como é conhecida, que mora no lugar da Codiceira. É esta uma das poucas mulheres do concelho, e da região, que confecciona de modo tradicional as “falachas”, bolo “centenário” de farinha de castanha, cozidas em forno de lenha, vendidas na Festa de São Brás, em Resende.
A origem desta relíquia da gastronomia tradicional remonta à Idade Média, uma época em que a farinha de castanha substituía, em períodos de crise económica, os cereais na confecção do pão caseiro, sendo fundamental na subsistência da população rural. Hoje, são vendidas, apenas, na Festa de São Brás, celebrada anualmente no dia 2 de Fevereiro, no Cimo de Resende, o “dia das falachas”, como reza a tradição. No entanto, a inexistência de projectos e de seguidores ameaça a sua continuidade
.

A tradição vem de família. A faina da Dona Rosa começa quando os primeiros ventos frios de Outono começam a “curar” as castanhas “peladas” e “curtidas” nos caniços das lareiras, previamente colhidas nos soutos de Cimo de Resende. O ciclo acaba em Fevereiro, com a Festa de São Brás, em Resende, onde despacha as últimas falachas.
O doce é feito à base da farinha de castanhas secas no caniço, durante os rigores de Inverno, ao calor e ao fumo da lareira, e moídas no moinho alveiro, de rodízio, no lugar de Xis, em Cárquere, um processo lento, mas necessário, já que a moagem eléctrica “põe a farinha muito grossa”.
Em Dezembro e Janeiro, testam-se os primeiros exemplares, para consumo caseiro ou para venda esporádica a pessoas amigas que o solicitam. Uma semana antes da Festa de São Brás, a azáfama é diária na preparação das centenas de milhar de falachas, consoante o ano, a vender na festividade do dia 2 de Fevereiro.
A confecção não tem segredos para a “falacheira”. “À farinha da castanha adiciona-se uma pequena porção de farinha de trigo, para obter a ‘liga’, água morna e um pouco de sal e amassa-se com a mão”, explica.
Pronta a massa, é paulatinamente colocada, à colher, sobre folhas de castanheiro, lavadas e secas, previamente recolhidas nos soutos, que a doceira dispõe longitudinal e transversalmente. “A folha serve de protecção à massa para que esta não ‘agarre’ à base do forno”, diz.
Cada falacha é, então, calabreada com uma faca, sempre molhada na tigela de água fria, até obter a forma de pequena e achatada broa. “Também fazemos umas maiores, deliciosas, cobertas com salpicão, que têm muita procura”, refere a Dona Rosa.
Prontas a irem ao forno de lenha, numa pá de madeira, aí cozem durante cerca de 10 a 15 minutos, tempo suficiente para adquirirem uma coloração dourada.
O resultado são “bolinhos” redondos, de cor acastanhada e sabor adocicado, que podem consumidos quentes ou frios. Apesar de serem comidas simples, há quem prefira cortá-las às tiras e colocá-las numa frigideira com um bom azeite da região, ou banha de porco, ou polvilhar com um pouco de canela e açúcar, fazendo um doce extraordinário.
Todos os anos, no dia 2 de Fevereiro, manhã cedo, com a ajuda do marido e dos seus filhos, a Dona Rosa carrega as falachas, para a Festa de São Brás, onde as vende, as mais pequenas a 1,5 euros, e as maiores, de salpicão, a 3 euros.

Contactos:

Maria Rosa Teixeira
Codiceira – Cimo de Resende
Telefone 254 877 779

Importância económica da castanha

A castanha assumiu, no passado, grande importância económica. Foi decisiva, em Portugal, para a subsistência das populações de serra, mantendo-se intimamente ligada, pela sua utilização na dieta alimentar, à sobrevivência das gentes rurais. Como nos refere Magalhães (MAGALHÃES, T, “O Castanheiro”, Ilustração Transmontana, 1910) “quanto essa abençoada árvore se desfaz em benefícios para o homem! Quer dos seus fructos quer da sua madeira, ella distilla perenne riqueza: “pinga” sempre! (...) mas só mais tarde eu conheci que as suas “pingas”, juntas, produziam grossa chuva de oiro na minha província”.
Assadas ou cozidas, as castanhas estão intimamente ligadas à tradição gastronómica portuguesa. As falachas são disso exemplo, estando preservadas na memória oral do nosso povo: “as falachas devem ser tendidas no cu de uma velha, para serem mais saborosas” (Leite de Vasconcelos, “Etnografia Portuguesa”). Na nossa região, quando alguém quer dar uma estalada ou um murro a outro diz: “levas uma falacha que não te endireitas!”. Sempre valerá mais comer uma falacha que levar com uma….

Todos ao São Brás…

Ano após ano, no dia 2 de Fevereiro, a tradição repete-se. A azáfama começa manhã cedo, quando chegam as primeiras viaturas, por uma estrada de terra batida, à procura dos melhores lugares, nas redondezas da Capela de São Brás, no Cimo de Resende.
Instalados os recursos materiais e humanos, começam os preparativos para o almoço. Procura-se lenha seca, colocam-se ao lume as panelas de ferro e prepara-se a “matéria-prima”: os enchidos (chouriço e salpicão), a carne de porco (cabeçolas, orelheira, entrecosto, patas, …), salgada, como convém, e as batatas e grelos, tradição da época. Outros estendem os merendeiros, confeccionados de véspera em casa. Para ir matando a fome, parte-se o presunto e abrem-se os garrafões com o bom vinho da região.
“Todos os anos é assim”, diz José Sousa, de Cimo de Resende, que aqui reencontra, anualmente, os amigos que marcam presença, religiosamente, no dia consagrado a São Brás, protector dos males de garganta. O cenário repete-se ao longo da serra: grupos de compinchas e de forasteiros chegam do concelho e da região, embelezando com o seu colorido esta paisagem rural, a troco de fé, convívio e muita comida…
Ao meio-dia, o cheiro a assados e cozidos a pairar no ar não engana ninguém: é hora do almoço. Nota-se que o elemento feminino está em menor número. “Isto hoje é só para homens”, refere João Ferro, de Forjães. “Aqui somos nós a fazer a comida”, segreda.
Ao início da tarde, preparando um novo ataque às panelas e aos garrafões, o elemento pagão dá lugar ao religioso. É chegada a hora da missa na Capela de homenagem ao orago São Brás, a que todos assistem, devotamente.
No fim da cerimónia religiosa, compram-se as tradicionais falachas, feitas de farinha de castanha, doce típico da festividade, preparadas nos dias anteriores para esta ocasião, vendidas durante o dia pelas poucas “falacheiras” que ainda subsistem no concelho. De seguida, continua-se o repasto e o convívio e, à tardinha, para atacar o frio que se aproxima com a noite, acendem-se fogueiras e joga-se à malha e à bola.
Quando a noite cai e os caminhos se turvam aos olhares dos foliões, é altura de regressar a casa com o desejo e a certeza de que no próximo ano, no mesmo dia, tudo se repetirá de novo…
*Apontamento da autoria de Paulo Sequeira, publicado no "Jornal de Resende", número de Fevereiro de 2011

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