Qualidade de vida aos 100 anos
Tenho razões para ser uma pessoa feliz. Sempre me dei bem com a minha mulher, que está aqui ao meu lado, ajudando-nos mutuamente numa vida difícil. Continuo a ter sorte, pois os nossos filhos apoiam-nos muito. O nosso filho, que vive numa casa perto da nossa, vem frequentemente perguntar e ver se está tudo bem. E as duas filhas, uma das quais vive em Gondomar e a outra em Vila Nova de Gaia, revezam-se, vindo cá quase todos os fins de semana. Desde Agosto do ano passado, o almoço vem do Centro Comunitário de S. Romão. À noite, aquecemos o resto da sopa e assim ficamos aconchegados para dormir.
Só fui operado às cataratas. Também estive bastante mal, tinha eu trinta e tal anos com uma febre intestinal, que atingiu muitas pessoas de S. Cipriano, tendo morrido muitas delas. Estive várias semanas de cama. A partir de uma certa altura, comecei a perder o apetite e não metia nada à boca. Até que fiquei mirradinho de todo e perdi a consciência. Um dia, uma irmã minha veio a casa visitar-me e chamou por mim. E eu olhei para ela e sorri. Parece que foi milagre. A minha mulher foi logo fazer um chá de cidreira e lá fui bebendo a custo. Depois deu-me a comer um pedaço de uma batatinha cozida, esmagada e embebida em azeite. Fui comendo aos poucos e cá estou. Houve uma outra vez, tinha eu mais de 60 anos, em que também estive acamado, mas por palermice minha. Estava eu a ajudar a meter a bagagem de uma senhora daqui de S. Cipriano, no comboio, na estação de Mosteirô, quando as carruagens começam a andar comigo lá dentro. Fiquei todo atrapalhado. Quando o comboio já tinha andado uns bons quilómetros, ganho coragem e atiro-me cá para fora. Claro que fiquei todo partido. O comboio entretanto pára, porque alguém puxou o alarme. Sei que fiquei junto a umas silvas. Pouco depois, chegaram os bombeiros que me levaram para o hospital de Marco de Canaveses. Fiquei com uma perna engessada. Queriam que eu lá ficasse uns dias, mas pedi para vir logo para S. Cipriano, pois é aqui que me sinto bem. Fiquei imobilizado durante três meses. Ainda fui a um endireita do outro lado do rio. Por causa desta brincadeira, ainda tive de pagar uma multa aos Caminhos de Ferro. Ah, também tive uma úlcera que consegui curar.
Mesmo com os achaques da idade, a máquina lá vai funcionando mais ou menos bem. Há pessoas muito mais novas que têm muito mais razões de queixa.
Tomo 5 medicamentos diferente por dia, para prevenir algumas doenças e outras maleitas, como o colesterol. Não preciso de tomar nada para dormir. Descanso lindamente. Felizmente não dependo de ninguém no dia-a-dia. Gosto de falar com as pessoas. Depois do pequeno almoço, quando está bom tempo, dou um passeiozinho. Depois do almoço, gosto de sair. Ao meio da tarde, sou capaz de dormir uma sesta. Gosto disto. Quando as minhas filhas me levam para Gondomar ou Vila Nova de Gaia, sinto logo saudades. Não me estou a ver num lar.
Descendência numerosa
Nasci em Covelinhas, em 25 de Dezembro de 1909. A minha mulher fez 96 anos no dia 24 de Maio. Éramos 10 irmãos. Uma irmã morreu com cerca de 30 anos. Há 11 anos morreu a última irmã, tinha ela 92 anos. Os outros morreram com a idade à volta de 65 anos. Agora sou o último. Estou preparado para partir quando Deus quiser. Ele é que sabe.
Tenho um filho e duas filhas, como já lhe disse. Netos são 12; bisnetos já somam 20 e trinetos já chegam aos 6. Tenho assim 41 descendentes directos. Dão para encher uma carreira. As pessoas que estiveram na festa em que fiz 100 anos davam para encher um campo de futebol.
Em casa dos pais
Naquela altura, começava-se a trabalhar no duro com cinco ou seis anos. O meu pai sempre foi caseiro, embora de seu tivesse uma casinha com um pequeno quintal. Desde pequenino que comecei a guardar o gado, a rapar as ervas, a empalhar as vacas.
Nunca entrei numa escola. Aprendi a ler e a escrever com um jeitoso, tinha eu 12 ou 13 anos. Aprendi à noite. O tal senhor começou por me ensinar em casa dos meus pais. Deixava lá uma vara para me arriar. De vez em quando era cada vergastada que eu sei lá. Até que um dia, uma irmã minha, com pena de mim, escondeu a vara. E o senhor ficou muito aborrecido. A partir daí, as aulas começaram a ser em casa dele. Como paga, a minha mãe dava-lhe qualquer coisita ligada à agricultura. Cheguei a ler e a escrever mais ou menos bem. Quanto à tabuada, não passei das contas de somar. Noutras contas senti mais dificuldade. Sabe, ler e escrever deram-me muito jeito. Na tropa, em Santarém, escrevia todas as semanas à minha namorada, àquela que é hoje a minha mulher. Enquanto eu escrevia quando queria e o que queria, a minha mulher tinha de pedir a outra pessoa para o fazer.
Até casar, trabalhei sempre para os meus pais. Mesmo quando dava algum dia fora, tinha de lhes entregar o dinheiro. Levei muitos carregos às costas e ajudei a levar muitas carradas de cereais para o celeiro de Caldas de Aregos, mas o dinheiro não passava pelas minhas mãos.
Trabalhava-se bem, mas comia-se mal, como se costuma dizer. Havia uma malga de caldo, uns painços e a cabeça ou rabo de uma sardinha, de vez em quando. A vida era trabalho. Ia-se para os campos antes das Ave-Marias e voltava-se já noite cerrada. Chegava-se ao fim do dia completamente estafado. A única distracção era ir à missa. Não se sabia nada. Veja bem que mesmo o 25 de Abril, soube-o por vizinhos. Mesmo nessa altura não tinha rádio, nem a casa, onde era caseiro, tinha electricidade.
Ouvia falar da monarquia, da implantação da república, mas mais nada. Aqui não chegavam notícias nem havia tempo para discutir política. A nossa preocupação era arranjar pão para comer.
Ainda estive um ano a servir, quando tinha pra aí 18 anos. Ganhava uns tostões. O dinheiro que ganhei deu para comprar as primeiras botas. Além desse dinheiro, o patrão deu-me uns socos, duas camisas e dois chapéus, um de pano e outro de palha. Para ter uma ideia da dureza daqueles tempos, o filho do patrão arranjou tudo sozinho e fugiu pró Brasil. Veio depois, passados 12 anos e cá casou.
Tenho razões para ser uma pessoa feliz. Sempre me dei bem com a minha mulher, que está aqui ao meu lado, ajudando-nos mutuamente numa vida difícil. Continuo a ter sorte, pois os nossos filhos apoiam-nos muito. O nosso filho, que vive numa casa perto da nossa, vem frequentemente perguntar e ver se está tudo bem. E as duas filhas, uma das quais vive em Gondomar e a outra em Vila Nova de Gaia, revezam-se, vindo cá quase todos os fins de semana. Desde Agosto do ano passado, o almoço vem do Centro Comunitário de S. Romão. À noite, aquecemos o resto da sopa e assim ficamos aconchegados para dormir.
Só fui operado às cataratas. Também estive bastante mal, tinha eu trinta e tal anos com uma febre intestinal, que atingiu muitas pessoas de S. Cipriano, tendo morrido muitas delas. Estive várias semanas de cama. A partir de uma certa altura, comecei a perder o apetite e não metia nada à boca. Até que fiquei mirradinho de todo e perdi a consciência. Um dia, uma irmã minha veio a casa visitar-me e chamou por mim. E eu olhei para ela e sorri. Parece que foi milagre. A minha mulher foi logo fazer um chá de cidreira e lá fui bebendo a custo. Depois deu-me a comer um pedaço de uma batatinha cozida, esmagada e embebida em azeite. Fui comendo aos poucos e cá estou. Houve uma outra vez, tinha eu mais de 60 anos, em que também estive acamado, mas por palermice minha. Estava eu a ajudar a meter a bagagem de uma senhora daqui de S. Cipriano, no comboio, na estação de Mosteirô, quando as carruagens começam a andar comigo lá dentro. Fiquei todo atrapalhado. Quando o comboio já tinha andado uns bons quilómetros, ganho coragem e atiro-me cá para fora. Claro que fiquei todo partido. O comboio entretanto pára, porque alguém puxou o alarme. Sei que fiquei junto a umas silvas. Pouco depois, chegaram os bombeiros que me levaram para o hospital de Marco de Canaveses. Fiquei com uma perna engessada. Queriam que eu lá ficasse uns dias, mas pedi para vir logo para S. Cipriano, pois é aqui que me sinto bem. Fiquei imobilizado durante três meses. Ainda fui a um endireita do outro lado do rio. Por causa desta brincadeira, ainda tive de pagar uma multa aos Caminhos de Ferro. Ah, também tive uma úlcera que consegui curar.
Mesmo com os achaques da idade, a máquina lá vai funcionando mais ou menos bem. Há pessoas muito mais novas que têm muito mais razões de queixa.
Tomo 5 medicamentos diferente por dia, para prevenir algumas doenças e outras maleitas, como o colesterol. Não preciso de tomar nada para dormir. Descanso lindamente. Felizmente não dependo de ninguém no dia-a-dia. Gosto de falar com as pessoas. Depois do pequeno almoço, quando está bom tempo, dou um passeiozinho. Depois do almoço, gosto de sair. Ao meio da tarde, sou capaz de dormir uma sesta. Gosto disto. Quando as minhas filhas me levam para Gondomar ou Vila Nova de Gaia, sinto logo saudades. Não me estou a ver num lar.
Descendência numerosa
Nasci em Covelinhas, em 25 de Dezembro de 1909. A minha mulher fez 96 anos no dia 24 de Maio. Éramos 10 irmãos. Uma irmã morreu com cerca de 30 anos. Há 11 anos morreu a última irmã, tinha ela 92 anos. Os outros morreram com a idade à volta de 65 anos. Agora sou o último. Estou preparado para partir quando Deus quiser. Ele é que sabe.
Tenho um filho e duas filhas, como já lhe disse. Netos são 12; bisnetos já somam 20 e trinetos já chegam aos 6. Tenho assim 41 descendentes directos. Dão para encher uma carreira. As pessoas que estiveram na festa em que fiz 100 anos davam para encher um campo de futebol.
Em casa dos pais
Naquela altura, começava-se a trabalhar no duro com cinco ou seis anos. O meu pai sempre foi caseiro, embora de seu tivesse uma casinha com um pequeno quintal. Desde pequenino que comecei a guardar o gado, a rapar as ervas, a empalhar as vacas.
Nunca entrei numa escola. Aprendi a ler e a escrever com um jeitoso, tinha eu 12 ou 13 anos. Aprendi à noite. O tal senhor começou por me ensinar em casa dos meus pais. Deixava lá uma vara para me arriar. De vez em quando era cada vergastada que eu sei lá. Até que um dia, uma irmã minha, com pena de mim, escondeu a vara. E o senhor ficou muito aborrecido. A partir daí, as aulas começaram a ser em casa dele. Como paga, a minha mãe dava-lhe qualquer coisita ligada à agricultura. Cheguei a ler e a escrever mais ou menos bem. Quanto à tabuada, não passei das contas de somar. Noutras contas senti mais dificuldade. Sabe, ler e escrever deram-me muito jeito. Na tropa, em Santarém, escrevia todas as semanas à minha namorada, àquela que é hoje a minha mulher. Enquanto eu escrevia quando queria e o que queria, a minha mulher tinha de pedir a outra pessoa para o fazer.
Até casar, trabalhei sempre para os meus pais. Mesmo quando dava algum dia fora, tinha de lhes entregar o dinheiro. Levei muitos carregos às costas e ajudei a levar muitas carradas de cereais para o celeiro de Caldas de Aregos, mas o dinheiro não passava pelas minhas mãos.
Trabalhava-se bem, mas comia-se mal, como se costuma dizer. Havia uma malga de caldo, uns painços e a cabeça ou rabo de uma sardinha, de vez em quando. A vida era trabalho. Ia-se para os campos antes das Ave-Marias e voltava-se já noite cerrada. Chegava-se ao fim do dia completamente estafado. A única distracção era ir à missa. Não se sabia nada. Veja bem que mesmo o 25 de Abril, soube-o por vizinhos. Mesmo nessa altura não tinha rádio, nem a casa, onde era caseiro, tinha electricidade.
Ouvia falar da monarquia, da implantação da república, mas mais nada. Aqui não chegavam notícias nem havia tempo para discutir política. A nossa preocupação era arranjar pão para comer.
Ainda estive um ano a servir, quando tinha pra aí 18 anos. Ganhava uns tostões. O dinheiro que ganhei deu para comprar as primeiras botas. Além desse dinheiro, o patrão deu-me uns socos, duas camisas e dois chapéus, um de pano e outro de palha. Para ter uma ideia da dureza daqueles tempos, o filho do patrão arranjou tudo sozinho e fugiu pró Brasil. Veio depois, passados 12 anos e cá casou.
Tropa
Fiquei apurado para a tropa. Tive um ano de espera. Fui para a arma de cavalaria, em Santarém. Estive lá 15 meses. Nunca vim de fim de semana a casa. Fiquei sempre por lá. Não havia dinheiro para vir de comboio. Comparado com o que se comia e trabalhava em casa, passava-se lá bem. Quando um patrão que tivemos, conhecido pelo Sr. Reitor ou Padre Rocha, nos disse todo contente que tinha comido um prato de arroz, veja lá bem a miséria.
Ainda me lembro de me encarregarem de ir buscar um cavalo a Lisboa. Para baixo, fui de comboio e levei os arreios. O cavalo, como não estava habituado, era um bocado teimoso, mas lá vim, com as rações que um soldado me deu. Trazia umas guias para ficar em casa da guarda, em Vila Franca de Xira. Dormi com o cavalo numa cavalariça. Depois lá fiz a viagem até Santarém.
No quartel tinha um cavalo atribuído de que era responsável. Também montava e treinava outros cavalos. Acho que era uma vida boa. No fundo, ficava satisfeito por não poder vir a casa. Estou convencido que o meu pai me obrigaria a trabalhar, se cá viesse.
Namoro e casamento
Um dia, vinha com um vizinho de Covelinhas para S. Cipriano. Vi aquela que é hoje a minha mulher e perguntei-lhe se a podia acompanhar. Só para fazer o papel dela, ainda disse: vá ter com o seu companheiro. E virou para casa. Insisti: posso acompanhá-la? Fui atrás dela, não mostrando, desta vez, qualquer reacção. Nesse dia, demos uma volta. Estava o destino traçado. Ainda tive duas moças que gostaram de mim, mas era da que é hoje minha mulher que gostava mesmo. Este primeiro encontro aconteceu tinha eu 21 anos e a minha mulher 16. Namorámos durante 6 anos. Na tropa, como já disse, escrevia-lhe todas as semanas. Normalmente, comprava uma folha de papel, envelope e o selo. Um dia, escrevi a carta, meti-o dentro do envelope e fechei-o. Fui à procura do selo e não o encontrei. Tinha-o deixado dentro do envelope, que o tive de inutilizar. Lá foi mais uma despesa para a qual não esperava.
Casei em 28 de Julho de 1936. Na véspera, ainda fui trabalhar. E vá lá, o meu pai permitiu que ficasse com o dinheiro que ganhei nesse dia. Foi o único dinheiro que tinha. Para o casamento escolhi a melhor roupa que havia lá em casa. Para as despesas tirei dinheiro a juros.
Vida de caseiro
Logo que nos casámos, fomos para caseiros. Era a nossa sina. Como é que havíamos de governar a vida? Para comprar os arreios para as vacas e outras coisas indispensáveis também tirei dinheiro a juros. Pertencia a uma família honrada, por isso havia sempre gente que mo emprestava. Os presuntos e salpicões do primeiro porco que matei foi para pagar a quem devia.
Tive vários patrões, mas sempre saí de bem com eles. Todos me disseram que podia voltar sempre que quisesse. Tive sempre a porta aberta. Mas nós tínhamos de estar abertos a quem nos oferecia melhores condições. Tudo o que era criado no chão (batatas, milho, centeio…) era de meias. O que vinha do ar (fruta e vinho) era de terços. As vacas eram do patrão, sendo o lucro das crias dividido a meias. Caso morressem, tínhamos de suportar metade da perca. Claro que podia criar um porco, galinhas e coelhos, mas alguns patrões exigiam o lombo do porco, 6 frangos por ano e duas dúzias de ovos pelo Natal e Páscoa.
A altura mais difícil ocorreu por alturas da Segunda Guerra Mundial com o racionamento do arroz, do sabão e de outros produtos. Podia não haver carne, que ficava mais para as vessadas e dias de festa. Podia não haver fartura, mas fiz todos os possíveis para que não houvesse fome em casa.
Trabalhei até aos 90 anos. Partirei quando Deus quiser.
Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
Fiquei apurado para a tropa. Tive um ano de espera. Fui para a arma de cavalaria, em Santarém. Estive lá 15 meses. Nunca vim de fim de semana a casa. Fiquei sempre por lá. Não havia dinheiro para vir de comboio. Comparado com o que se comia e trabalhava em casa, passava-se lá bem. Quando um patrão que tivemos, conhecido pelo Sr. Reitor ou Padre Rocha, nos disse todo contente que tinha comido um prato de arroz, veja lá bem a miséria.
Ainda me lembro de me encarregarem de ir buscar um cavalo a Lisboa. Para baixo, fui de comboio e levei os arreios. O cavalo, como não estava habituado, era um bocado teimoso, mas lá vim, com as rações que um soldado me deu. Trazia umas guias para ficar em casa da guarda, em Vila Franca de Xira. Dormi com o cavalo numa cavalariça. Depois lá fiz a viagem até Santarém.
No quartel tinha um cavalo atribuído de que era responsável. Também montava e treinava outros cavalos. Acho que era uma vida boa. No fundo, ficava satisfeito por não poder vir a casa. Estou convencido que o meu pai me obrigaria a trabalhar, se cá viesse.
Namoro e casamento
Um dia, vinha com um vizinho de Covelinhas para S. Cipriano. Vi aquela que é hoje a minha mulher e perguntei-lhe se a podia acompanhar. Só para fazer o papel dela, ainda disse: vá ter com o seu companheiro. E virou para casa. Insisti: posso acompanhá-la? Fui atrás dela, não mostrando, desta vez, qualquer reacção. Nesse dia, demos uma volta. Estava o destino traçado. Ainda tive duas moças que gostaram de mim, mas era da que é hoje minha mulher que gostava mesmo. Este primeiro encontro aconteceu tinha eu 21 anos e a minha mulher 16. Namorámos durante 6 anos. Na tropa, como já disse, escrevia-lhe todas as semanas. Normalmente, comprava uma folha de papel, envelope e o selo. Um dia, escrevi a carta, meti-o dentro do envelope e fechei-o. Fui à procura do selo e não o encontrei. Tinha-o deixado dentro do envelope, que o tive de inutilizar. Lá foi mais uma despesa para a qual não esperava.
Casei em 28 de Julho de 1936. Na véspera, ainda fui trabalhar. E vá lá, o meu pai permitiu que ficasse com o dinheiro que ganhei nesse dia. Foi o único dinheiro que tinha. Para o casamento escolhi a melhor roupa que havia lá em casa. Para as despesas tirei dinheiro a juros.
Vida de caseiro
Logo que nos casámos, fomos para caseiros. Era a nossa sina. Como é que havíamos de governar a vida? Para comprar os arreios para as vacas e outras coisas indispensáveis também tirei dinheiro a juros. Pertencia a uma família honrada, por isso havia sempre gente que mo emprestava. Os presuntos e salpicões do primeiro porco que matei foi para pagar a quem devia.
Tive vários patrões, mas sempre saí de bem com eles. Todos me disseram que podia voltar sempre que quisesse. Tive sempre a porta aberta. Mas nós tínhamos de estar abertos a quem nos oferecia melhores condições. Tudo o que era criado no chão (batatas, milho, centeio…) era de meias. O que vinha do ar (fruta e vinho) era de terços. As vacas eram do patrão, sendo o lucro das crias dividido a meias. Caso morressem, tínhamos de suportar metade da perca. Claro que podia criar um porco, galinhas e coelhos, mas alguns patrões exigiam o lombo do porco, 6 frangos por ano e duas dúzias de ovos pelo Natal e Páscoa.
A altura mais difícil ocorreu por alturas da Segunda Guerra Mundial com o racionamento do arroz, do sabão e de outros produtos. Podia não haver carne, que ficava mais para as vessadas e dias de festa. Podia não haver fartura, mas fiz todos os possíveis para que não houvesse fome em casa.
Trabalhei até aos 90 anos. Partirei quando Deus quiser.
Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Apontamento de autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Maio de 2010
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