Fruto de uma investigação aturada, o Dr. Joaquim Correia apresentou, no dia 9 do passado mês de Abril, à Academia Portuguesa de História, de que é membro, uma importante comunicação sobre a “cura milagrosa” do nosso primeiro rei. A ilustre assembleia foi confrontada com a importância e o papel de Cárquere nos primórdios da nacionalidade. Este apontamento pretende dar conta de alguns dados dessa prelecção.
Breve contextualização histórica de Cárquere
Esta freguesia testemunhou a fixação de diferentes povos ao longo da sua história. Há fortes evidências de ter existido um antigo castro pré-celta no outeiro, designado de Medorno ou Medorro situado junto da igreja e do mosteiro. Os romanos, aqui chegados no século II a. C., estabeleceram neste local um “oppidum” (povoação fortificada). Da sua presença chegaram até nós importantes vestígios de que se destacam inúmeras moedas e várias lápides funerárias. Nestas proximidades, em Caldas de Aregos, passava, aliás, a famosa “Via Caurium”, que ligava Mérida a Braga, o que explica a forte colonização romana do nosso concelho. Neste contexto, não é descabida a referência de Frei Teodoro de Melo, em manuscrito de 1733, a uma estatueta de Diana, descoberta por uns “rústicos” que trabalhavam para os padres Jesuítas em Cárquere. Sendo assim, parece justificada a existência de um pequeno e rude templo em honra da deusa das florestas e da caça.
Com a cristianização destas terras, que deve ter acontecido ao longo do século VI, registou-se a fundação de pequenas paróquias e a construção de pequenos templos. Assim aconteceu em Cárquere, datando o seu primeiro templo, ao que tudo leva a supor, da época suevo-visigótica. E por analogia com o que sempre aconteceu ao longo da história, é provável que tivesse sido erguido a partir da transformação/reconstrução do templo pagão, tendo-se operado a substituição do culto de Diana por Santa Maria, Mãe de Jesus Cristo. A corroborar esta tese, há a preciosa escultura em marfim, de 29mm de altura e 14 de base, representando uma Senhora com o Menino, cujas formas e expressões denunciam ser obra muita antiga, talvez da época visigótica. Há indícios que sugerem ter sido Cárquere um centro intenso de espiritualidade e de difusão religiosa, tendo esta imagem sido venerada com especial devoção. Por altura das invasões sarracenas, a mesma terá possivelmente sido escondida, tendo sido posta a descoberto aquando da reconquista cristã, reiniciando-se, a partir de então e ainda com mais afinco, a antiga devoção a Santa Maria (de Cárquere).
A “cura milagrosa”
É neste local de sobreposição de cultos, de sortilégios, da redescoberta da imagem ancestral de Nossa Senhora e do reencontro com a Sua devoção que acontece o “milagre”.
Sendo D. Egas Moniz, senhor de Ribadouro e com Paço em Resende, pessoa da máxima confiança do Conde D. Henrique, este constituiu-o aio do seu filho Afonso Henriques, ficando com a incumbência de o criar e educar. Conta-se que a criança sofria de uma malformação das pernas, o que constituía uma grande preocupação para Egas Moniz. E a cura só poderia vir por intervenção divina. É natural que as orações se dirigissem para Nossa Senhora/Santa Maria, cuja imagem era muito venerada ali bem perto. Até que um dia, encontrando-se no seu Paço de Resende, esta lhe apareceu em sonhos, dizendo-lhe que caminhasse até Cárquere, colocasse a criança em cima do seu altar e lhe acendesse duas velas. E assim fez. Mas um facto inesperado aconteceu. Cansado e dormente, só o príncipe se deu conta que uma das velas caíra e pegara fogo às toalhas e ao altar. A fim de evitar o alastramento do incêndio, é impelido a agir, deslocando-se para apagar as chamas. E é nesse instante que se sente curado.
Esta é a tradição que tem atravessado gerações, encontrando-se bem enraizada na nossa região. A par disso, este “milagre” encontra-se referenciado em diversos cronistas do século XVI e XVII.
Inconsistência da tradição popular e dos relatos dos cronistas
Muitos autores não dão credibilidade a estes textos, por terem sido escritos quatro ou cinco séculos depois do suposto milagre. Acham inverosímil que este facto não tivesse sido devidamente anotado nos documentos da época, pois supostamente permitiu levar Portugal à independência. Um rei portador de uma enfermidade nunca poderia levar avante tão insigne e dificílima tarefa. Muitos alegam também que as crónicas foram fabricadas, pois foram redigidas por frades ou monges integrantes de ordens ou famílias monásticas que estiveram na posse do Mosteiro de Cárquere, sendo parte interessada no seu engrandecimento. Os detractores da tese do milagre identificam ainda algumas contradições de datas, tais como a que situa a cura aos cinco anos, em memória da qual Conde D. Henrique mandou erigir a igreja, quando a “Crónica dos Godos”atesta que este faleceu quando o filho tinha apenas dois anos. Por fim, há quem negue que Egas Moniz tivesse sido senhor destas terras e que D. Afonso Henriques aqui tivesse permanecido.
Argumentos a favor
O Dr. Joaquim Correia Duarte rebate estes argumentos com base em vários dados de que se enumeram brevemente os seguintes.
Em primeiro lugar, convém realçar que ninguém apareceu até hoje a negar a deficiência. Quanto à passagem a escrito do eventual milagre, é bom recordar que, nos primeiros tempos da nacionalidade, não havia os chamados cronistas do reino. O primeiro a surgir foi Fernão Lopes, que se incumbiu de tal tarefa por ordem de D. Duarte, datada de 19 de Março de 1434. De qualquer forma, nada nos garante que tivesse havido um relato escrito, tendo-se perdido com o tempo. Convém, no entanto, realçar que muito do que sabemos sobre os primeiros tempos da nossa história foi pela via dos nobiliários, hagiógrafos e cronicões do século XIV e cronistas dos séculos XVI e XVII. E quanto ao crédito que devem merecer, a questão deve ser ponderada. Na verdade, há relatos de exageros e inverdades, mesmo por parte dos “cronistas por ofício”. O facto de serem remunerados e, por vezes, cumulados de honrarias propiciava descrições não correspondentes aos factos. Contudo, há que separar o trigo do joio. Alexandre Herculano confiou, por exemplo, na obra de Frei António Brandão, historiador de Alcobaça da era de seiscentos, a quem chamou “um ilustre restaurador da história pátria”, servindo-se dos seus documentos para redigir a sua História de Portugal. O mesmo não aconteceu com Bernardo de Brito, cuja obra caracterizou de “altamente ridícula”. Ora, António Brandão refere-se ao “milagre de Cárquere”, citando duas antiquíssimas “Comemorações” em louvor de D. Afonso Henriques, que ele próprio teve em mão: uma, escrita em pergaminho, tendo-a visto no Mosteiro de Lorvão, e a outra no Mosteiro de Alcobaça. E estes Mosteiros não tinham qualquer interesse em forjar o milagre, já que nada tinham a ver com Cárquere. E importa perguntar: Como é que em Lorvão e Alcobaça se sabia do “milagre” tantos anos antes de ser “inventado” pelos cronistas?
Por sua vez, a questão das datas tem de ser relativizada, pois não é credível que o Conde D. Henrique confiasse as tarefas e responsabilidade nem transmitisse as recomendações, constantes do Nobiliário de D. Pedro e das Crónicas Breves de Santa Cruz de Coimbra, a uma criança de dois anos e, ainda por cima, doente e incapaz. Aliás as contradições dos investigadores relativamente a alguns aspectos da vida do nosso primeiro rei são frequentes, designadamente a data e o lugar do seu nascimento.
Quanto à estadia de D. Egas Moniz na região de Ribadouro, há alguma unanimidade a este respeito, pois possuía aqui grandes bens patrimoniais e parece ter dominado várias revoltas da população árabe na zona de Lamego, o que lhe terá valido a confiança do Conde e da mulher e um papel ímpar na corte. Esta relação de amizade poderá justificar a responsabilidade e o papel de aio do príncipe herdeiro.
Infanticídio e troca de crianças
Esta é uma hipótese muito difundida pelo país para contradizer o milagre, sendo aceite por muita gente. Tem origem num artigo de Santana Dionísio, escrito n “O Primeiro de Janeiro” de 12 de Janeiro de 1969, onde o autor sugere que o príncipe deficiente foi eliminado, tendo sido substituído por um filho saudável e robusto de Egas Moniz. O suposto milagre de Cárquere teria sido apenas uma invenção ardilosa para encobrir este facto. Esta versão foi suavizada, falando-se actualmente de uma troca de crianças, ficando D. Egas Moniz com uma criança enfermiça e o Conde D. Henrique com uma outra forte e saudável.
Esta hipótese não está documentada nem tem atrás de si qualquer tradição. Nem parece consistente. A honestidade e a honradez de Egas Moniz e do Conde D. Henrique não são compatíveis com a troca de crianças e muito menos com o infanticídio. Além disso, como explicar a inexistência de reivindicações de poder por parte de outros filhos do Conde D. Henrique e o silêncio de D. Teresa na batalha de S. Mamede, sabendo que o responsável da revolta não era filho do casal?
Onde está o milagre?
O Dr. Joaquim Correia Duarte refere na sua comunicação que ninguém pode afirmar nem ninguém pode negar o milagre. Todavia, os argumentos a favor, em seu entendimento, são mais credíveis, embora não existam documentos nem provas irrefutáveis. A sua opinião é a de que “pode não ter havido um milagre assim tão claro, tão aparatoso, tão radical e tão rápido; pode e deve haver ampliação e exagero, tanto no que aconteceu como no modo como as coisas ocorreram, mas alguma coisa se passou, e muito séria, e com isso se relaciona Cárquere, a sua Igreja e o seu Mosteiro”.
Embora se desconheça o alcance e a natureza da enfermidade, a envolvência religiosa, a auréola do local e a eventual fama de ocorrências extraordinárias propiciavam condições e criavam mecanismos para a cura de pequenos e grandes males. Qualquer transformação e acontecimento inexplicado eram interpretados, à luz da mundivisão religiosa de então, como milagre, que o tempo ajudava a colorir e a ampliar de alguns pormenores fantásticos. A realidade não é objectivável. Os dados e os fenómenos só são passíveis de interpretação. O facto de abruptamente o príncipe ter começado a andar, a ter acontecido, seria hoje explicado “cientificamente” na base de mecanismos psicológicos. Para quem tem fé, contudo, independentemente dos contributos e das explicações da ciência, determinados acontecimentos, pelas suas características extraordinárias e pelas alterações inesperadas na vida das pessoas, podem sempre ser vistos como milagres ou antes como sinais reveladores da intervenção divina.
Em síntese, para além do que realmente se terá passado (e “alguma coisa se passou, e muito séria”), Cárquere consubstancia no plano simbólico o arranque da nacionalidade, com os “primeiros passos” de D. Afonso Henriques.
Nota: Este apontamento segue de perto, por vezes quase literalmente, a comunicação Santa Maria de Cárquere, em Resende: A “cura milagrosa” do nosso primeiro rei e os “primeiros passos” da nossa História, apresentada pelo Dr. Joaquim Correia Duarte à Academia Portuguesa de História, em 9 de Abril de 2008, cujo texto (sem a extensa bibliografia) está disponível neste blogue.
*Apontamento de minha autoria, publicado no Jornal de Resende, em Maio de 2008
Breve contextualização histórica de Cárquere
Esta freguesia testemunhou a fixação de diferentes povos ao longo da sua história. Há fortes evidências de ter existido um antigo castro pré-celta no outeiro, designado de Medorno ou Medorro situado junto da igreja e do mosteiro. Os romanos, aqui chegados no século II a. C., estabeleceram neste local um “oppidum” (povoação fortificada). Da sua presença chegaram até nós importantes vestígios de que se destacam inúmeras moedas e várias lápides funerárias. Nestas proximidades, em Caldas de Aregos, passava, aliás, a famosa “Via Caurium”, que ligava Mérida a Braga, o que explica a forte colonização romana do nosso concelho. Neste contexto, não é descabida a referência de Frei Teodoro de Melo, em manuscrito de 1733, a uma estatueta de Diana, descoberta por uns “rústicos” que trabalhavam para os padres Jesuítas em Cárquere. Sendo assim, parece justificada a existência de um pequeno e rude templo em honra da deusa das florestas e da caça.
Com a cristianização destas terras, que deve ter acontecido ao longo do século VI, registou-se a fundação de pequenas paróquias e a construção de pequenos templos. Assim aconteceu em Cárquere, datando o seu primeiro templo, ao que tudo leva a supor, da época suevo-visigótica. E por analogia com o que sempre aconteceu ao longo da história, é provável que tivesse sido erguido a partir da transformação/reconstrução do templo pagão, tendo-se operado a substituição do culto de Diana por Santa Maria, Mãe de Jesus Cristo. A corroborar esta tese, há a preciosa escultura em marfim, de 29mm de altura e 14 de base, representando uma Senhora com o Menino, cujas formas e expressões denunciam ser obra muita antiga, talvez da época visigótica. Há indícios que sugerem ter sido Cárquere um centro intenso de espiritualidade e de difusão religiosa, tendo esta imagem sido venerada com especial devoção. Por altura das invasões sarracenas, a mesma terá possivelmente sido escondida, tendo sido posta a descoberto aquando da reconquista cristã, reiniciando-se, a partir de então e ainda com mais afinco, a antiga devoção a Santa Maria (de Cárquere).
A “cura milagrosa”
É neste local de sobreposição de cultos, de sortilégios, da redescoberta da imagem ancestral de Nossa Senhora e do reencontro com a Sua devoção que acontece o “milagre”.
Sendo D. Egas Moniz, senhor de Ribadouro e com Paço em Resende, pessoa da máxima confiança do Conde D. Henrique, este constituiu-o aio do seu filho Afonso Henriques, ficando com a incumbência de o criar e educar. Conta-se que a criança sofria de uma malformação das pernas, o que constituía uma grande preocupação para Egas Moniz. E a cura só poderia vir por intervenção divina. É natural que as orações se dirigissem para Nossa Senhora/Santa Maria, cuja imagem era muito venerada ali bem perto. Até que um dia, encontrando-se no seu Paço de Resende, esta lhe apareceu em sonhos, dizendo-lhe que caminhasse até Cárquere, colocasse a criança em cima do seu altar e lhe acendesse duas velas. E assim fez. Mas um facto inesperado aconteceu. Cansado e dormente, só o príncipe se deu conta que uma das velas caíra e pegara fogo às toalhas e ao altar. A fim de evitar o alastramento do incêndio, é impelido a agir, deslocando-se para apagar as chamas. E é nesse instante que se sente curado.
Esta é a tradição que tem atravessado gerações, encontrando-se bem enraizada na nossa região. A par disso, este “milagre” encontra-se referenciado em diversos cronistas do século XVI e XVII.
Inconsistência da tradição popular e dos relatos dos cronistas
Muitos autores não dão credibilidade a estes textos, por terem sido escritos quatro ou cinco séculos depois do suposto milagre. Acham inverosímil que este facto não tivesse sido devidamente anotado nos documentos da época, pois supostamente permitiu levar Portugal à independência. Um rei portador de uma enfermidade nunca poderia levar avante tão insigne e dificílima tarefa. Muitos alegam também que as crónicas foram fabricadas, pois foram redigidas por frades ou monges integrantes de ordens ou famílias monásticas que estiveram na posse do Mosteiro de Cárquere, sendo parte interessada no seu engrandecimento. Os detractores da tese do milagre identificam ainda algumas contradições de datas, tais como a que situa a cura aos cinco anos, em memória da qual Conde D. Henrique mandou erigir a igreja, quando a “Crónica dos Godos”atesta que este faleceu quando o filho tinha apenas dois anos. Por fim, há quem negue que Egas Moniz tivesse sido senhor destas terras e que D. Afonso Henriques aqui tivesse permanecido.
Argumentos a favor
O Dr. Joaquim Correia Duarte rebate estes argumentos com base em vários dados de que se enumeram brevemente os seguintes.
Em primeiro lugar, convém realçar que ninguém apareceu até hoje a negar a deficiência. Quanto à passagem a escrito do eventual milagre, é bom recordar que, nos primeiros tempos da nacionalidade, não havia os chamados cronistas do reino. O primeiro a surgir foi Fernão Lopes, que se incumbiu de tal tarefa por ordem de D. Duarte, datada de 19 de Março de 1434. De qualquer forma, nada nos garante que tivesse havido um relato escrito, tendo-se perdido com o tempo. Convém, no entanto, realçar que muito do que sabemos sobre os primeiros tempos da nossa história foi pela via dos nobiliários, hagiógrafos e cronicões do século XIV e cronistas dos séculos XVI e XVII. E quanto ao crédito que devem merecer, a questão deve ser ponderada. Na verdade, há relatos de exageros e inverdades, mesmo por parte dos “cronistas por ofício”. O facto de serem remunerados e, por vezes, cumulados de honrarias propiciava descrições não correspondentes aos factos. Contudo, há que separar o trigo do joio. Alexandre Herculano confiou, por exemplo, na obra de Frei António Brandão, historiador de Alcobaça da era de seiscentos, a quem chamou “um ilustre restaurador da história pátria”, servindo-se dos seus documentos para redigir a sua História de Portugal. O mesmo não aconteceu com Bernardo de Brito, cuja obra caracterizou de “altamente ridícula”. Ora, António Brandão refere-se ao “milagre de Cárquere”, citando duas antiquíssimas “Comemorações” em louvor de D. Afonso Henriques, que ele próprio teve em mão: uma, escrita em pergaminho, tendo-a visto no Mosteiro de Lorvão, e a outra no Mosteiro de Alcobaça. E estes Mosteiros não tinham qualquer interesse em forjar o milagre, já que nada tinham a ver com Cárquere. E importa perguntar: Como é que em Lorvão e Alcobaça se sabia do “milagre” tantos anos antes de ser “inventado” pelos cronistas?
Por sua vez, a questão das datas tem de ser relativizada, pois não é credível que o Conde D. Henrique confiasse as tarefas e responsabilidade nem transmitisse as recomendações, constantes do Nobiliário de D. Pedro e das Crónicas Breves de Santa Cruz de Coimbra, a uma criança de dois anos e, ainda por cima, doente e incapaz. Aliás as contradições dos investigadores relativamente a alguns aspectos da vida do nosso primeiro rei são frequentes, designadamente a data e o lugar do seu nascimento.
Quanto à estadia de D. Egas Moniz na região de Ribadouro, há alguma unanimidade a este respeito, pois possuía aqui grandes bens patrimoniais e parece ter dominado várias revoltas da população árabe na zona de Lamego, o que lhe terá valido a confiança do Conde e da mulher e um papel ímpar na corte. Esta relação de amizade poderá justificar a responsabilidade e o papel de aio do príncipe herdeiro.
Infanticídio e troca de crianças
Esta é uma hipótese muito difundida pelo país para contradizer o milagre, sendo aceite por muita gente. Tem origem num artigo de Santana Dionísio, escrito n “O Primeiro de Janeiro” de 12 de Janeiro de 1969, onde o autor sugere que o príncipe deficiente foi eliminado, tendo sido substituído por um filho saudável e robusto de Egas Moniz. O suposto milagre de Cárquere teria sido apenas uma invenção ardilosa para encobrir este facto. Esta versão foi suavizada, falando-se actualmente de uma troca de crianças, ficando D. Egas Moniz com uma criança enfermiça e o Conde D. Henrique com uma outra forte e saudável.
Esta hipótese não está documentada nem tem atrás de si qualquer tradição. Nem parece consistente. A honestidade e a honradez de Egas Moniz e do Conde D. Henrique não são compatíveis com a troca de crianças e muito menos com o infanticídio. Além disso, como explicar a inexistência de reivindicações de poder por parte de outros filhos do Conde D. Henrique e o silêncio de D. Teresa na batalha de S. Mamede, sabendo que o responsável da revolta não era filho do casal?
Onde está o milagre?
O Dr. Joaquim Correia Duarte refere na sua comunicação que ninguém pode afirmar nem ninguém pode negar o milagre. Todavia, os argumentos a favor, em seu entendimento, são mais credíveis, embora não existam documentos nem provas irrefutáveis. A sua opinião é a de que “pode não ter havido um milagre assim tão claro, tão aparatoso, tão radical e tão rápido; pode e deve haver ampliação e exagero, tanto no que aconteceu como no modo como as coisas ocorreram, mas alguma coisa se passou, e muito séria, e com isso se relaciona Cárquere, a sua Igreja e o seu Mosteiro”.
Embora se desconheça o alcance e a natureza da enfermidade, a envolvência religiosa, a auréola do local e a eventual fama de ocorrências extraordinárias propiciavam condições e criavam mecanismos para a cura de pequenos e grandes males. Qualquer transformação e acontecimento inexplicado eram interpretados, à luz da mundivisão religiosa de então, como milagre, que o tempo ajudava a colorir e a ampliar de alguns pormenores fantásticos. A realidade não é objectivável. Os dados e os fenómenos só são passíveis de interpretação. O facto de abruptamente o príncipe ter começado a andar, a ter acontecido, seria hoje explicado “cientificamente” na base de mecanismos psicológicos. Para quem tem fé, contudo, independentemente dos contributos e das explicações da ciência, determinados acontecimentos, pelas suas características extraordinárias e pelas alterações inesperadas na vida das pessoas, podem sempre ser vistos como milagres ou antes como sinais reveladores da intervenção divina.
Em síntese, para além do que realmente se terá passado (e “alguma coisa se passou, e muito séria”), Cárquere consubstancia no plano simbólico o arranque da nacionalidade, com os “primeiros passos” de D. Afonso Henriques.
Nota: Este apontamento segue de perto, por vezes quase literalmente, a comunicação Santa Maria de Cárquere, em Resende: A “cura milagrosa” do nosso primeiro rei e os “primeiros passos” da nossa História, apresentada pelo Dr. Joaquim Correia Duarte à Academia Portuguesa de História, em 9 de Abril de 2008, cujo texto (sem a extensa bibliografia) está disponível neste blogue.
*Apontamento de minha autoria, publicado no Jornal de Resende, em Maio de 2008
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