A Igreja matriz de S. Martinho de Mouros, classificada como Monumento Nacional por decreto de 2 de Junho de 1922, constitui um dos mais importantes edifícios religiosos da arte românica portuguesa, um “estilo” artístico que se desenvolveu durante a Idade Média.
Fruto de uma época profundamente militarizada, em que se procurava consolidar o território nacional, este monumento constitui um verdadeiro templo fortificado, um misto de fortaleza e casa de Deus (PINTO, 1982), que se explica pela necessidade das populações cristãs se defenderem contra os ataques dos muçulmanos refugiados nas vizinhanças, no processo da reconquista cristã.
De facto, a Igreja de S. Martinho de Mouros abarca, num só edifício, as funções religiosas e militares, constituindo-se como uma das mais notáveis construções das igrejas-fortalezas do românico nacional, com a sua singular estrutura que passa das três naves mais altas da torre fronteira, abobadadas, à nave única com cobertura de madeira do corpo. O mais importante presbitério rural que, no seu estilo, se ergue em terras da Beira Alta, no dizer de Vergílio Correia (CORREIA, 1924).
Com um primeiro foral concedido, em 1057, por D. Fernando Magno de Leão a uma população maioritariamente formada por mouros, tal acabaria por influenciar o topónimo, que se manteve até aos nossos dias. D. Teresa confirmou este foral em 1111, tendo a Igreja sido construída entre a segunda metade do século XII e a primeira do século XIII, época em que o priorado é entregue aos Hospitalários (RODRIGUES, 1995). Com a morte de D. Guiomar Coutinho, último membro da Casa de Marialva, a que a igreja pertencia, o padroado foi transferido para a Universidade de Coimbra por D. João III, através do Breve CIRCA OFICII QUOD, do Papa Paulo III (1537, 14 Março).
Características
A fachada deste templo fortificado é marcada por um corpo rectangular, que lhe confere a sua individualidade, é suportada, interiormente por arcos de volta perfeita, que descarregam em pilares sustentados, exteriormente, por contrafortes.
No centro, um portal de arco apontado, com quatro arquivoltas, envolvidas por uma faixa axadrezada, e capitéis de ornatos zoomórficos e vegetalistas, debruado por uma banda de enxaquetado, com características semelhantes ao da Igreja de Santa Maria de Almacave, em Lamego.
Numa época em que poucos eram aqueles que liam (e esses eram essencialmente monges e clérigos) e raros eram os livros existentes, penosa e pacientemente copiados nos scriptoria dos mosteiros e conventos, importava fazer chegar a todo o crente, a todo o espaço da Cristandade, a palavra divina. E na impossibilidade de a dar à leitura, impunha-se encontrar um meio em que a forma e conteúdo vissem preservados a sua sacra dignidade e fossem, ao mesmo tempo, acessíveis a todos. “A imagem é a escrita dos iletrados”, escreveu Gregório I, o Grande, Papa de
Suporte da mensagem, o templo afirmava-se sólido, imutável, simbolicamente eterno, frequentemente inexpugnável, atraindo a atenção dos crentes para a sua massa pétrea e, sobretudo, para a fachada e porta axial, onde se concentrava o mais importante acervo da decoração escultórica exterior (RODRIGUES, 1995).
Na fachada de S. Martinho de Mouros encontram-se outras particularidades, nomeadamente no lado esquerdo da porta de entrada, onde são visíveis dois sulcos sobre a parede. Trata-se da “vara” e do “côvado”, antigas medidas de comprimento equivalentes respectivamente a 110cm e a 70cm, que serviam de padrão legal aos comerciantes que aqui vinham, periodicamente, em dias de feira, aferir as suas medidas perante o povo (FURTADO, 1986, COSTA, 1979).
Transposta a “porta” exterior, intensamente iluminada, entra-se no interior de estudada escuridão, onde apenas algumas frestas lançam uma ténue luz sobre o espaço e a decoração interna, convidando ao recolhimento. O mistério é assim reforçado por um efeito cenográfico, contando com a lenta adaptação da vista do observador à penumbra, dificultando a total e imediata percepção do que o rodeia: começando no portal, continuando nos capitéis da nave e culminado no cruzeiro (a manifestação de Deus) que, pela sua luminosidade, eleva o olhar do crente.
Destaca-se a cobertura da capela-mor, que sobreviveu à intervenção de restauro purista dos anos 50 do séc. XX, formada por vinte e quatro caixotões de madeira policromada, de produção barroca, com temática hagiográfica, onde podemos identificar alguns santos jesuítas e cistercienses, São Jerónimo, o “Baptismo de Cristo” e os quatro Evangelistas.
A ladear o arco triunfal, no lado do Evangelho, existe uma pintura mural quinhentista representando São Martinho, o orago do templo, com vestes de bispo, com mitra e báculo, abençoando com a mão direita e, no lado da Epistola, em muito mau estado, uma figura feminina religiosa e um cavalo.
Intervenções
A Igreja de S. Martinho de Mouros contempla, a nível da sua arquitectura, vários estilos (românico, gótico, maneirista e barroco), fruto de intervenções sofridas ao longo dos séculos. No entanto, foi no século XX que diversas intervenções, pelo seu grau e dimensão, mutilaram a estrutura deste templo religioso, com consequências, em alguns casos, irreparáveis.
Para cumprir os propósitos da ditadura criou-se a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), cuja acção, embora frequentemente controversa, permitiu conservar grande parte dos monumentos religiosos e militares românicos que sobreviveram às vicissitudes do século XIX ou do início do século XX, com o anticlericalismo dominante da Primeira República.
A sua acção iniciou-se logo na primeira metade da década de 30, privilegiando o restauro de monumentos românicos, ao qual procuravam assegurar, por vezes a um preço demasiado elevado, a sua “pureza” original (DGEMN, 1937).
Os meados do século XX motivaram diversas intervenções neste edifício religioso, em consequência, nomeadamente, da derrocada do campanário em 1944 (18 de Novembro). Mais recentemente, em 2002, foram efectuadas obras de reparação e beneficiação geral das coberturas; intervenções de conservação da talha e estatuária dourada e policroma do retábulo da Epístola; reparação da estrutura da cobertura e substituição de telhas; limpeza dos paramentos exteriores, com refechamento de juntas e reparação e pintura de caixilharias e portas.
Hoje, a Igreja de S. Martinho de Mouros constitui um local obrigatório de passagem para quem quer conhecer o vasto e rico património medieval do Douro Sul, uma importante zona de passagem e de cruzamentos culturais.
ACESSO
ENQUADRAMENTO:
Peri-urbano, isolado, a meia encosta, em superfície plana artificial, sustentado por muro alto, em alvenaria de granito, formando um adro, dentro do qual se encontra um cruzeiro de pedra, inserindo-se em zona de interesse paisagístico. A fachada principal confina com a via pública, pavimentada a cubos de granito e, junto, situa-se a residência paroquial.
CONSTRUÇÃO:
Século XII / XIII. O templo actual parece ter três momentos de construção: o primeiro corresponde ao corpo da nave; depois reconstruiu-se a capela-mor quadrangular, com o arco triunfal levemente abatido, e capitéis decorados; finalmente, ergueu-se a torre e da facada, acabada já no século XIII, como atesta o portal axial, apontado, com capitéis vegetalistas de decoração tardia. Nota-se uma forte influência da escultura bracarense nos capitéis de ousia, aparentados aos de Rates, revelando a capacidade de penetração da reforma beneditina até zonas bem mais longínquas da área de intervenção da diocese; e atestando, ao mesmo tempo, a relativa antiguidade desta fundação, seguramente iniciada ainda no século XII.
BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA PARA O ARTIGO:
CORREIA, 1924
CORREIA, Vergílio, Monumentos e Esculturas, Lisboa, 1924.
COSTA, 1979
COSTA, M. Gonçalves da, História do Bispado e da Cidade de Lamego – Paróquias e Conventos, vol. II, Lamego, 1979.
DGEMN, 1937
Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), n.º 10, Lisboa, 1937.
FURTADO, 1986
FURTADO, Maria Leonor de Moura, Igreja de São Martinho de Mouros, Lisboa, 1986/87.
PINTO, 1982
PINTO, Joaquim Caetano, Monografia do seu Concelho – Resende, Braga, 1982.
RODRIGUES, 1995
RODRIGUES, Jorge, O mundo românico (séc. XI - XIII), in História da Arte Portuguesa, (Dir. Paulo Pereira), vol. I, Lisboa, 1995.
VASCONCELOS, 1918
VASCONCELOS, Joaquim de, A Arte Românica em Portugal, Porto, 1918.
*Artigo da autoria do Dr. Paulo Sequeira, docente de história na Escola Secundária D. Egas Moniz, publicado no Jornal de Resende (edição de Novembro de 2009)