terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Catálogo das doenças da Cúria*


Estou convencido de que nunca pensaram ter de ouvir o que ouviram. Estavam os cardeais, bispos, monsenhores na bela Sala Clementina, para a saudação natalícia papal. A Cúria — governo e administração central da Igreja — esperaria palavras diplomáticas, alusivas à data. Mas o Papa Francisco veio com o Evangelho, num discurso profético e arrasador.

A. Como seria belo, começou, "pensar que a Cúria romana é um pequeno modelo da Igreja". No entanto, "como todo o corpo humano, está exposta à doença, ao mau funcionamento". E enumerou, em tom duro, algumas destas doenças da Cúria.

1. Tudo gira à volta da "patologia do poder". Assim, a primeira doença é a de "sentir-se imortal, indispensável", que leva ao narcisismo e a considerar-se superior a todos e não ao serviço de todos. Por isso, aconselhou uma cura de humildade: passar por um cemitério e ver os nomes de tantos que também pensaram que eram imortais e indispensáveis. "Uma Cúria que não se autocrítica, que não procura melhorar é um corpo doente". 2. Outra doença é o "martismo". No Evangelho, há duas irmãs: Marta e Maria e, enquanto esta escuta Jesus, Marta corre e atarefa-se sem descanso. O martismo é, pois, o trabalho excessivo, no stress, na agitação, sem repouso para a meditação e interioridade. 3. Há também a "fossilização mental e espiritual", que leva à perda da sensibilidade necessária para chorar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram. 4. Lá está ainda a doença do excesso de planificação e do funcionalismo, que conduz a posicionamentos estáticos e imutáveis, com a pretensão de domesticar o Espírito. 5. A doença da má coordenação, perdendo o espírito de colaboração e equipa. 6. A doença do "Alzheimer espiritual": perdeu-se a memória do encontro com Jesus e com Deus e vive-se então na dependência de concepções imaginárias, das próprias paixões, caprichos e manias. 7. Lá estão "a rivalidade e a vanglória", transformando-se a aparência, as honras e as medalhas honoríficas no primeiro objectivo da vida. 8. A doença da "esquizofrenia existencial", que é a de "quem vive uma vida dupla, fruto da hipocrisia típica do medíocre e do vazio espiritual que títulos académicos não podem preencher". Doença que afecta sobretudo quem se limita às coisas burocráticas e perde o contacto pastoral. 9. A doença dos "rumores, mexericos, murmurações, má-língua", que pode levar ao "homicídio a sangue frio". Cuidado com "o terrorismo dos rumores, do diz-se!". 10. A doença de "divinizar os chefes", própria de quem idolatra os superiores: "são vítimas do carreirismo e do oportunismo". 11. A doença da indiferença para com os outros. 12. A "doença da cara de funeral": são pessoas" bruscas e grosseiras", sem alegria nem delicadeza. 13. A doença da acumulação de bens materiais, querendo assim preencher "um vazio existencial no coração". 14. A doença dos "círculos fechados", com o perigo de cortar a relação com o Corpo da Igreja e até com o próprio Cristo. 15. A última é "a doença do mundanismo, do exibicionismo", transformando o serviço em poder.


B. É claro que "estas doenças e tentações são naturalmente um perigo para cada cristão e para cada cúria (diocesana), comunidade, paróquia, movimento eclesial, e podem ferir tanto a nível individual como comunitário", concluiu. Aliás, podemos acrescentar que as tentações de sentimento de imortalidade, Alzheimer espiritual, esquizofrenia existencial, exibicionismo, materialismo, vaidade, nepotismo, martismo... são tentações de governantes e cidadãos em geral, em toda a parte. Mas, aqui, sem adoçar as palavras, Francisco dirigiu-se directamente à Cúria romana, que não quer como corte e que não reagiu entusiasta ao discurso, apenas com palmas tímidas e frouxas. Possivelmente, a Cúria ao longo dos tempos terá feito mais ateus e provocado mais abandonos da Igreja do que Marx, Nietzsche, Freud e outros pensadores ateus juntos.

Recentemente, o historiador da Igreja, Andrea Riccardi, fundador da célebre Comunidade de Santo Egídio, ex-ministro da Itália e amigo de Francisco, advertiu que "o Papa tem muita oposição dentro e fora da Cúria, e sabe-o". Francisco está a operar uma revolução na Igreja e tem consciência de que há maquinações no sentido de um restauracionismo pré-conciliar. Mas também sabe, como acrescentou Riccardi, que, sem o Concílio Vaticano II, "a Igreja teria naufragado e seria uma pequena comunidade com um grande passado". "A Igreja errou ao apresentar-se como o partido dos valores tradicionais", e "aceitar o desafio de ser Igreja-povo é crucial". Francisco é consciente de que, sem reformas estruturais na Igreja, corre o risco de, desaparecendo ele, o seu pontificado vir a ser considerado como um simples parêntesis. Por isso, invocou a urgência de conversão da Cúria. Fê-lo, à luz do Evangelho, frente à Cúria e sabendo que a maior parte da Igreja e da opinião pública mundial está do seu lado.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 27 de Dezembro de 2014

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Herança cristã da Europa*

No contexto dos debates à volta da entrada ou não da Turquia na União Europeia, o escritor turco Orhan Pamuk, Nobel da Literatura de 2006, fez, na sua recente visita a Lisboa, algumas considerações sobre os valores fundamentais da Europa, que merecem atenção. Foi dizendo que a herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus monumentos, pois não pode esquecer "a preservação dos seus valores fundamentais", acrescentando que "temos de ter uma discussão séria sobre esses valores".
Pamuk não concretizou muito quanto a estes valores. Assim, talvez se deva ter em atenção o que disse, há um ano, a um jornalista colombiano, que lhe perguntou se se sentia europeu: "Não sei. Não penso nesses termos. Em primeiro lugar, sinto-me turco. E um turco tanto se sente europeu como não europeu. Acredito numa Europa que não se baseia no cristianismo, mas no Renascimento, na Modernidade, na 'Liberdade, Igualdade, Fraternidade'. Essa é a minha Europa. Acredito nessas coisas e quero fazer parte delas. Mas, se a Europa é a civilização cristã, lamento: nós, turcos, não queremos entrar."
Precisamente aqui é que está a razão por que chamo a atenção para estas declarações. De facto, a pergunta é: tudo aquilo que Pamuk quer, e bem - Renascimento, Modernidade, Liberdade, Igualdade, Fraternidade -, são pensáveis, sem terem na sua base precisamente o cristianismo?
Vou citar uma série de grandes e reputados pensadores que mostram que não, e trata-se de pensadores que são agnósticos ou ateus. Por exemplo, o historiador Antonio Piñero dizia recentemente, depois de declarar que Jesus afirmou a igualdade teológica de todas as pessoas enquanto filhas de Deus: "Esperava-se que mais tarde chegasse a igualdade social. Se compararmos o cristianismo com todas as outras religiões do mundo, vemos que essa igualdade substancial de todos os homens é o que tornou possível que com o tempo se chegasse ao Renascimento, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e aos direitos humanos. Isto quer dizer: o Evangelho guarda, em potência, a semente dessa igualdade, que não podia ser realidade na sociedade do século I. O cristianismo está por trás, à maneira de fermento, de todos os movimentos igualitários e feministas que houve na história, embora agora o não vejamos claramente, porque o cristianismo evoluiu para humanismo. Mas esse humanismo não se vê em religiões que não sejam cristãs. Ou porventura o budismo, por si, chegou ao Iluminismo? O xintoísmo? O islão? Os poucos movimentos feministas que há nessas religiões estão inspirados na cultura ocidental. E a cultura ocidental tem como sustento a cultura cristã. Embora se trate de uma cultura cristã descrida, desclericalizada e agnóstica, culturalmente cristã."
Houve erros e tragédias, guerras, colonialismo, Cruzadas, Inquisição, no contexto do cristianismo histórico? Ninguém o pode negar. Mas é também inegável a sua influência positiva no melhor dos últimos dois milénios da história da humanidade, incluindo a actualidade. Por isso, o filósofo ateu convicto e combatente, Michel Onfray, escreve no seu Tratado de Ateologia: 'A carne ocidental é cristã. Incluindo a dos ateus, muçulmanos, deístas e agnósticos educados, criados ou instruídos na zona geográfica e ideológica judeo-cristã." O filósofo André Comte-Sponville também escreve: "Sou ateu, uma vez que não creio em nenhum deus, mas fiel, porque me reconheço como parte de determinada tradição, de determinada história e dos seus valores judeo-cristãos (ou greco-cristãos), que são os nossos."
Na sua recente obra, Sagesses d'hier et d'aujourd'hui (Sabedorias de ontem e de hoje), na qual traça a história essencial das sabedorias e filosofias ao longo dos tempos, o filósofo Luc Ferry, que foi ministro da Educação de França, dedica um grande capítulo a "Jesus e a revolução judeo-cristã". Aí se lê, logo à entrada: "Entre os séculos V e XVII, o Ocidente foi essencialmente cristão, cultural e filosoficamente cristão, de tal modo que a filosofia moderna, mesmo quando foi crítica das religiões e até resolutamente ateia, não esteve menos marcada de modo decisivo por esta herança religiosa." E dá o exemplo do idealismo alemão, acrescentando: "Assim, mesmo para os que não são crentes, o fundo de cultura judeo-cristã é omnipresente, de tal modo que é sempre indispensável interessar-se por ela e captar os seus principais traços, em ordem a compreendermo-nos a nós mesmos e compreender o mundo no qual vivemos." E, depois de apresentar características essenciais do cristianismo, raízes e herança da Europa democrática e dos direitos humanos, conclui: "Mesmo quando se é radicalmente não-crente, está-se evidentemente impregnado por esta cultura cristã que dominou a história do Ocidente, mas que não se reduziu a ele."
No Natal, o que está em festa essencial é a infinita dignidade humana, que veio ao mundo em Jesus Cristo. Boas-Festas!
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 20 de Dezembro de 2014

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A DIGNIDADE DE SER ATEU*

A liberdade religiosa é um direito humano fundamental. Poder-se-ia mesmo dizer que é o direito mais fundamental, na base de todos os outros direitos, na medida em que, estando referido ao infinito-liberdade de acreditar em Deus ou não, seguir esta religião ou aquela ou nenhuma, mudar de religião -, mostra a transcendente dignidade humana no confronto com o infinito.
Nem sempre houve esta compreensão, também entre os cristãos e nomeadamente na Igreja Católica. Quando se olha para a história, encontramos, neste domínio, um estendal de miséria e vergonha. Houve guerras religiosas, Inquisição, assassínios, prisões, conversões sob ameaça de morte, tudo por causa de interesses de domínio: religioso, político, económico, geoestratégico.
Felizmente, há hoje no Ocidente a afirmação clara do direito à liberdade religiosa, garantida por Estados não confessionais, dentro da separação do Estado e das Igrejas. E hoje, de facto, o cristianismo é, de longe, a religião mais perseguida no mundo. Veja-se o volumoso "Livro negro da condição dos cristãos no mundo", recentemente publicado.

Desgraçadamente, o Relatório 2014 da Ajuda à Igreja que Sofre sobre as violações da liberdade religiosa no mundo é tudo menos animador. Entre os vinte países com a mais alta taxa de intolerância religiosa, há doze que pioraram no último ano: Iraque, Líbia, Nigéria, Paquistão, Síria, Sudão, Azerbaijão, China, Egipto, República Centro-Africana, Usbequistão, Myanmar, e quinze têm um regime de governo muçulmano, a que se deve juntar a Nigéria, religiosamente dividida entre cristãos e muçulmanos e o autoproclamado Estado Islâmico. Há um cuja religião preponderante é o budismo: Myanmar.
Também no Sri Lanka, que o Papa Francisco visitará em Janeiro próximo, onde o budismo domina, há intolerância, embora em menor medida. Associa-se ao budismo a ideia de paz, tolerância, sabedoria, compaixão, e pensa-se no Dalai Lama. Isto é verdade, mas é igualmente verdade que a liberdade religiosa está fortemente reprimida não só nestes dois países mas também noutros, embora em grau menos elevado, onde o budismo é dominante: Laos, Camboja, Butão, Mongólia.
Como já foi dito, também o Relatório considera que, em vários casos, os motivos para a repressão são sobretudo políticos, étnicos e culturais. Mas não se poderá negar a afirmação de um credo religioso contra os outros, como acontece de modo absolutamente claro no Estado Islâmico. Neste caso, a natureza religiosa da guerra brutal contra os "infiéis" é afirmada pela revista La Civiltà Cattolica: "A sua é uma guerra de religião e de aniquilamento. Instrumentaliza o poder da religião e não vice -versa." Não só os cristãos, os iazidis e judeus mas também outros irmãos muçulmanos, xiitas e alauítas, etc. são considerados "apóstatas", "porque não têm como meta o califado mundial, mas, quando muito, Estados nacionais governados pela sharia". Esta brutalidade chegou à África, com o grupo Boko Haram.
Evidentemente, face a um deus que legitimasse a crueldade cega e bruta, arrepiante, do Estado Islâmico, e a violência e o terrorismo em seu nome, só haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu.
Já aqui escrevi sobre o KAICIID, sigla em inglês do Centro Internacional King Ab-dullah bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural. A sua sede é Viena, os fundadores, a Áustria, a Espanha e a Arábia Saudita, tendo o Vaticano como observador fundador e apoiante da iniciativa impulsionada pelo monarca saudita, que dá o nome à instituição. Em 19 de Novembro passado, da sua reunião resultou a Declaração United Against Violence in the Name of Religion, condenando, portanto, a violência em nome da religião. De louvar, claro, mas não se pode deixar de referir que a Arábia Saudita proíbe a prática de religiões não muçulmanas.
De regresso da sua visita à Turquia, também em Novembro, o Papa Francisco declarou, numa conferência de imprensa no avião, que "não se pode dizer que todos os muçulmanos são terroristas" e que "nós também temos cristãos fundamentalistas, eh?!" Mas pediu insistentemente aos líderes muçulmanos "uma condenação mundial" do terrorismo islâmico: "Seria bom que todos os líderes muçulmanos, políticos, religiosos, digam claramente que condenam isso, pois ajudaria a maioria do povo muçulmano. Todos necessitamos de uma condenação mundial." Se há islamofobia, também há cristianofobia: "Perseguem os cristãos no Médio Oriente como se quisessem que nada restasse de cristão."
Penso que, para a liberdade religiosa, há duas condições essenciais. Uma tem que ver com a leitura histórico-crítica dos textos sagrados. A outra exige a separação do Estado e da Igreja, da religião e da política. Sem um Estado confessionalmente neutro, laico, que garanta a liberdade religiosa de todos, continuará a capitis diminutio (perda de direitos) dos cidadãos que não sigam a religião oficial do Estado.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 13 de Dezembro de 2014

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A AVÓ EUROPA DE FRANCISCO*

A Europa mítica é uma princesa de Tiro. Como que a lembrar que é a Eurásia, a Europa ecuménica, de fronteiras imprecisas. Zeus disfarçado de touro aproximou-se da bela princesa fenícia, deixando que o acariciasse e trepasse para o seu dorso. Entrou então pelo mar, dirigindo Eros o casal para Creta, onde fizeram amor. Foi a esta Europa, ao mesmo tempo divina e terrena, e agora em crise, envelhecida e sem confiança, que o Papa Francisco se dirigiu na semana passada com dois discursos: ao Parlamento Europeu e ao Conselho da Europa. 1. Francisco quis deixar "uma mensagem de esperança e de alento" a uma Europa que, num mundo cada vez mais global, é cada vez menos "eurocêntrica" e dá a impressão de "cansaço e envelhecimento", a ponto de "os grandes ideais que a inspiraram parecerem ter perdido força de atracção".

No centro do ambicioso projecto europeu tem de estar o homem, "não tanto como cidadão ou sujeito económico", mas como "pessoa dotada de uma dignidade transcendente". A promoção desta dignidade significa reconhecer que a pessoa possui "direitos inalienáveis". Mas o homem não é uma "mó- nada", é um ser em relação, de tal modo que direitos e deveres de cada um estão em conexão com os dos outros e com o bem comum.
Denunciou a "doença da solidão", que atinge velhos, pobres, imigrantes, jovens sem referências, advertindo que "o ser humano corre o risco de ser reduzido a uma mera engrenagem de um mecanismo que o trata como um simples bem de consumo para ser utilizado". Este equívoco surge quando prevalece "a absolutização da técnica", que acaba por causar "uma confusão entre os fins e os meios", e é o resultado da "cultura do descarte", do "consumismo exasperado", da "globalização da indiferença".
No famoso fresco de Rafael, que se encontra no Vaticano e representa a Escola de Atenas, no qual Platão aponta para o alto e Aristóteles estende a mão para diante e para o chão, vê "uma imagem que descreve bem a Europa na sua história, feita de um permanente encontro entre o céu e a terra, onde o céu indica a abertura ao transcendente, que desde sempre caracterizou o homem europeu, e a terra representa a sua capacidade prática e concreta de enfrentar as situações e os problemas".
Entre os problemas, lembrou a importância fundamental da família, "as numerosas injustiças e perseguições que sofrem as minorias religiosas e particularmente cristãs", "é hora de favorecer as políticas de emprego e voltar a dar-lhe dignidade", a questão migratória: "não se pode tolerar que o Mediterrâneo se torne um grande cemitério", a ecologia: devemos ser "guardiões" e "não donos" da natureza.
"Chegou a hora de construir juntos a Europa que não gire à volta da economia mas da sacralidade da pessoa humana, dos valores inalienáveis", que abrace com valentia o seu passado, com o seu "património cristão", e olhe "com confiança o futuro", vivendo "o presente com esperança", abandonando "a ideia de uma Europa atemorizada". Para promover "uma Europa protagonista, transmissora de ciência, arte, música, valores humanos e também de fé. A Europa que contempla o céu e persegue ideais, que caminha sobre a terra segura e firme, precioso ponto de referência para toda a humanidade".

2. 0 que Francisco pensa de verdade sobre a Europa disse-o, em Outubro, ao Conselho das Conferências Episcopais da Europa, ao abandonar o discurso oficial e falar ex corde.
"Que se passa hoje na Europa? Continua a ser a nossa mãe Europa ou é a avó Europa? É ainda fecunda? É estéril? Por outro lado, esta Europa cometeu algum pecado. Temos de dizê-lo com amor: não reconheceu uma das suas raízes." Por isso, já não se sente cristã "ou sente-se cristã um pouco às escondidas, mas não quer reconhecer esta raiz europeia".
A Europa "está a ser invadida". "Será a segunda invasão dos bárbaros, não sei. Agora, sente esta 'invasão' entre aspas, de gente que vem à procura de trabalho, liberdade e uma vida melhor."
"A Europa está ferida." E fala da crise e do desemprego, sobretudo dos jovens. "A Europa descartou as crianças. De modo um pouco triunfal. Recordo que quando era estudante num país as clínicas que faziam abortos depois mandavam o resultado para fábricas de cosméticos. A beleza da maquilhagem feita com o sangue dos inocentes."
A Europa está cheia de velhos. E "cansada de desorientação". "Eu não quero ser pessimista, mas digamos a verdade: depois da comida, da roupa e da saúde, quais são os gastos mais importantes? A cosmética e os animais de estimação. Não têm filhos, mas afecto ao gatinho, ao cãozinho. É este o segundo gasto depois dos três principais. O terceiro é toda a indústria para favorecer o prazer sexual. Os nossos jovens sentem isto, vêem isto, vivem isto."
Mas não é o fim, pois a Europa "tem muitos recursos para andar para diante. E o recurso maior é a pessoa de Jesus". No meio das feridas, esta é "a nossa missão: pregar Jesus Cristo, sem vergonha".
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 6 de Dezembro de 2014

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O LAMAÇAL: ÉTICA E POLÍTICA*

1. Tenho aqui escrito muitas vezes que, ao contrário do q ue se pensa, fé e acreditar não são em primeiro lugar categorias religiosas. Trata-se do fundamental da existência, no sentido de que, sem fé, crédito, confiança, ninguém pode viver bem. O que mais falta faz no país não é precisamente a confiança e o crédito? A nossa vida está baseada, em todos os domínios, na confiança (vem de fides, fé) e no crédito (vem de credere, crer, acreditar) que damos aos outros e à vida e que eles nos dão a nós, de tal modo que podemos crer e confiar em nós próprios, abrindo futuro pessoal e colectivo.
Assim, a crise em que o país está mergulhado é a pior, porque minou a confiança. No meio deste lamaçal, em quem se pode confiar?


2. A nossa tragédia está aqui: perdemos o essencial. E o essencial somos nós mesmos. Os seres humanos somos constitutivamen- te abertos à questão ética. De facto, dada a neotenia - nascemos por fazer-, a nossa tarefa essencial, diria mesmo a única, no mundo é fazermo- -nos a nós próprios. Sendo livres, fazermo-nos moralmente bem. Temos a experiência de sermos dados a nós próprios. Assim, somos donos e senhores de nós mesmos - essa é a experiência radical da liberdade -, de tal modo que, no fim, desta tarefa de nos fazermos - e é sempre o que está acontecer: fazendo o que fazemos, estamos a fazer-nos a nós próprios - tanto pode resultar uma obra de arte como uma porcaria (desculpe-se a expressão, mas ela é a que traduz a realidade). Isto, individualmente e também colectivamente, pois fazemo-nos sempre em comunidade e sociedade. Desgraçadamente, é a segunda alternativa que nos está a acontecer.

3. 0 que é que se impõe então com toda a urgência? Uma conversão moral. Cada uma, cada um, tem de assumir-se a si mesma, a si mesmo, na sua intrínseca tarefa: realizar-se na dignidade. Temos de habitar o mundo eticamente (um dos étimos da nossa palavra ética é êthos, que significa morada).
Precisamos de política? Claro. Mas, em última análise, precisamos da política no sentido estrito, que implica o Estado enquanto organização política da sociedade, detendo ele o monopólio da violência, porque não somos todos éticos.
Se todos fossem éticos, segundo a ética desinteressada, no quadro do fazer-se bem moralmente a si próprio, não era necessária a política, que ficava reduzida à administração das coisas. Só porque somos egoístas, interesseiros, corruptos e corruptores, é que temos necessidade do Estado para regular e gerir de modo não violento os conflitos. Como escreve o filósofo A. Comte-Sponville, se a moral reinasse, não teríamos necessidade de polícia, de leis, de tribunais, de forças armadas, de prisões.
"Não é possível legislar sobre tudo, até porque o indivíduo tem mais deveres do que o cidadão, pois há o pré-político e o pré-jurídico"
Deste modo, entende-se que ética e política não se identificam nem confundem, mas os seus objectivos são os mesmos: a realização verdadeiramente humana da humanidade de todos. Mas, precisamente aqui, uma vez que a política aparece como necessária, porque não somos éticos, surge o núcleo da questão: como encontrar políticos que sejam precisamente políticos, mas com ética?
Retomo o que já aqui tenho defendido. O grande desafio do nosso tempo é a formação ética, moral (uso aqui os termos como idênticos, sem as distinções que tecnicamente se imporiam), para os valores, que não se esgotam nem se identificam com o dinheiro e a riqueza, embora o valor dinheiro seja necessário. Quando isso não acontece, remetemos constantemente para a política, para as leis, para a regulação, para os tribunais... Ora, neste quadro, fica-se confrontado com questões temíveis. Primeira: não é possível legislar sobre tudo, até porque o indivíduo tem mais deveres do que o cidadão, pois há o pré-político e o pré-jurídico. Depois, seja como for, sem ética assumida - e acrescentaria: sem referência religiosa ao Absoluto -, fica apenas a lei e a sua sanção, o medo e a esperança de não se ser apanhado. Por exemplo, corrompe-se, é-se corrupto, não se paga impostos, precisamente na esperança de não se ser apanhado: se isso acontecer, tanto pior... De qualquer forma, nesta lógica, sem valores éticos assumidos, acaba, no limite, por ser necessário colocar um polícia junto de cada cidadão, para que cumpra a lei, mas, como os polícias também são humanos, é preciso pôr um polícia junto de cada polícia. O totalitarismo no meio de um lamaçal! Juvenal viu bem: Custos custodit nos. Quis custodiet ipsos custodes?  (A guarda  guarda-nos. Quem guardará a própria guarda?).

4. É extraordinário, não deixando mesmo de ser paradoxal e estranho, que, precisamente no meio do lamaçal em que nos afundamos, seja notícia três trabalhadores anónimos da recolha de lixo da Câmara da Póvoa de Varzim terem, honradamente, entregado no respectivo serviço a quantia de 4400 e tal euros que encontraram num contentor. E ouvi-os dizer, na sua simplicidade honrada: foi isto que nos ensinaram em casa e na escola, quando éramos miúdos.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 29 de Novembro de 2014

terça-feira, 25 de novembro de 2014

REFORMADOS, EMÉRITOS, ETC.*

Há muito que me pergunto porque é que uns são reformados, outros jubilados, outros eméritos, outros pensionistas ou aposentados. Pus-me no encalço das palavras, à procura do seu sentido originário. O que aí fica é o resultado, confesso que um pouco apressado, desse exercício.

1. Claro que reformado vem de reforma. A reforma que, em certos contextos, aparece mais imediatamente é a Reforma protestante. Aqui, porém, ela tem que ver com a situação de ir para a reforma e receber uma reforma, que é, em princípio, um quantitativo em dinheiro. Reformado é, pois, o que passou à reforma, por ter atingido uma certa idade e trabalhado um certo número de anos, com os respectivos descontos, ou porque ficou pura e simplesmente incapacitado para o trabalho. De modo estranho, reforma vem do latim reformare, com o significado de voltar à primeira forma, restabelecer, alterar, e reformado é o que torna à sua primeira forma, mas também o desfigurado, modificado.

Quem diria que pensionista tem na sua raiz o verbo latino pensar e (pensar e pesar)? De facto, pensar e, palavra vinculada a pendere, em latim, significa pesar, no sentido de comparar pesos. Daí, pensar significa pesar razões, para entender, julgar e decidir. No caso de pensão, lá está o facto de pesar uma mercadoria e ter de pagá-la e, daí, pensionista como aquele ou aquela que recebe uma pensão.
Entre nós, os bispos, ao chegarem aos 75 anos, tornam-se eméritos, palavra que também se pode aplicar, sobretudo noutros países europeus, aos professores universitários. Emeritusé o particípio do verbo latino emerere, merecer, ter cumprido um serviço, ganhar algo a partir daí. O emérito é merecedor de um determinado status (pense-se, por exemplo, no Papa emérito Bento XVI) ou recompensa por ter terminado ou concluído adequadamente o seu serviço. Na Roma Antiga, emeritus aplicava-se concretamente ao veterano retirado do exército, mas também a outros casos. De qualquer modo, deve-se recompensar o mérito; mas será que ele existe em todos os casos?
O aposentado remete para o verbo latino pausar e, que significa parar para descansar, pousar, repousar. O hóspede "pousa" na casa de um amigo. Quem peregrina pela vida tem direito a pousar, repousar, descansar, fazer pausa, aposentar-se, cessando o trabalho.
Nomeadamente os magistrados e os professores universitários são jubilados. A palavra vem do latim jubilare, que significa lançar gritos de alegria, - originariamente, referia-se aos gritos e silvos dos camponeses para comunicar entre si e chamar o gado -, mas também tem que ver com a palavra hebraica yobel, som da trombeta a anunciar o jubileu, festa judaica que se celebrava cada 50 anos e que trazia a libertação e o repouso inclusivamente às terras. No jubileu cristão, o Papa concede indulgências especiais. A jubilação nasce da conexão entre o retirar-se após o ciclo do trabalho realizado e dos serviços prestados e a consequente satisfação - dizem as más línguas que, por vezes, no caso dos professores, o júbilo é sobretudo dos estudantes, que se vêem libertos de alguém incompetente, porque sabe pouco ou não sabe ensinar.

2. Apesar das diferenças nas categorias, nos títulos e sobretudo no quantitativo, por vezes miserável e escandalosamente diferente, da reforma, todos - pensionistas, eméritos, jubilados, aposentados-são sobretudo isso: reformados.
Claro, a reforma pode trazer alegria e o tal júbilo, porque se deixa de trabalhar com horários e todo o peso institucional e se pode repousar, fazer outras coisas que nunca se tinha podido fazer, ler, reflectir e recordar a vida e dedicar-se mais à família e aos amigos e recolher os frutos de uma vida preenchida. Mas ela pode também trazer o aumento dos achaques, uma solidão amarga e corrosiva, e, de qualquer modo, lembra a todos que se está na última fase da existência e que o futuro neste mundo será cada vez menos pujante. Decisivo é então esforçar- se por manter a actividade física, mental, social, criar a sedução por novos interesses e talvez dar a Deus o lugar que nunca teve. É preciso viver sempre intensamente cada instante do milagre exaltante do mundo e do existir.

3. Mas é preciso reconhecer também que há algo de cínico e sarcástico na palavra jubilação (em Espanha, usa-se para todos) , sobretudo quando se pensa como são tratados os reformados, os tais que a sociedade abandona porque são velhos, e deixaram o trabalho por invalidez e velhice, considerados agora socialmente inúteis, porque não produtivos, e, por isso, colocados em depósitos à espera do fim.
Cá está: em tempos de crise, os governos, para a austeridade, têm sempre facilmente à mão os reformados, com este ou aquele nome, porque pouca ou nenhuma falta fazem - podem até ser considerados um peso para os outros e sobretudo para o erário público -, e, assim, nem protestar podem, muito menos com uma greve, porque ninguém precisa deles. Que júbilo!
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 22 de Novembro de 2014

terça-feira, 18 de novembro de 2014

MORAL, VÍTIMAS E DEUS*



Vínculo inevitável 
entre moral e religião 
dá-se pela esperança, 
sobretudo quando se pensa
 nas vítimas inocentes

Após conflitos e condenações, a Igreja reconheceu a legítima autonomia das realidades terrestres, o que significa que, por exemplo, a ciência, a medicina, a política, a economia se regem pelas suas própria leis, sem a tutela da religião. Sobretudo quando se olha para o mundo islâmico, fica bem patente a importância desta autonomia nomeadamente na política, exigindo a separação da Igreja e do Estado.
Também a moral é autónoma. Aliás, na perspectiva cristã, autonomia e teonomia acabam por coincidir, na medida em que, se Deus cria por amor, então a plena e adequada realização humana, que deve constituir a norma e o critério da acção humana boa, coincide com a vontade de Deus, cujo único interesse são as criaturas totalmente realizadas: a vontade de Deus é o bem da criatura. De qualquer modo, a exigência moral não surge do facto de se ser crente ou não, mas da condição humana de querer ser pessoa autêntica e plena, o que significa que, como escreveu A. Torres Queiruga, "desde que um e outro queiram ser honestos, não existe nada que no nível moral um crente deva fazer e um ateu não". Assim, só para dar um exemplo, a propósito da jovem Brittany Maynard, que decidiu a sua morte por suicídio assistido no passado dia 1, depois de os médicos lhe terem diagnosticado um cancro incurável no cérebro, que lhe causaria uma morte dolorosíssima: mesmo do ponto de vista cristão, está-se perante uma situação de decisão moral legítima, no quadro da autonomia, que, aliás, como é sabido, o famoso teólogo Hans Küng reclama também para si, ao colocar-se a mesma possibilidade próxima: "Precisamente porque creio na vida eterna, posso, quando for o tempo, com responsabilidade, decidir sobre o momento e o modo da minha morte."
O que aí fica dito não quer dizer que não haja relações entre moral e religião. Isso acontece, por exemplo, quando se procura aprofundar o fundamento incondicional e definitivo da moral. Neste sentido, veja-se este texto de Sigmund Freud, numa carta a um amigo: "Pergunto-me a mim mesmo porque aspirei sempre a comportar-me com honra, a mostrar consideração e afecto para com os outros, sempre que as circunstâncias o permitiram. Perguntei-me permanentemente o porquê disto, mesmo depois de dar-me conta de que me prejudicava a mim mesmo e de que choviam os golpes sobre mim, porque as pessoas são brutais e traiçoeiras, e não fui capaz de dar uma resposta a mim mesmo, o que está longe de ser razoável."
A Escola Crítica de Frankfurt é particularmente sensível neste domínio. Assim, Max Horkheimer disse: "Visto sob o aspecto meramente científico, o ódio não é pior do que o amor, apesar de todas as diferenças sociofuncionais. Não existe nenhuma argumentação lógica concludente pela qual não deva odiar, se, desse modo, não me causo nenhuma desvantagem na vida social. Como pode fundamentar-se com exactidão que não devo odiar, se isso me causa prazer? O positivismo não encontra nenhuma instância transcendente aos homens que distinga entre disponibilidade e afã de proveito, entre bondade e crueldade, avareza e entrega de si mesmo. Também a lógica emudece: não reconhece primado algum à dimensão moral. Todo o intento de fundamentar a moral em prudência terrena, em vez de fazê-lo a partir do ponto de vista do Além - nem mesmo Kant resistiu sempre a esta tendência -, baseia-se em ilusões harmonizadoras. Tudo o que tem relação com a moral baseia-se, em última análise, na teologia."
Jürgen Habermas, que vê na religião uma capacidade especial de mobilização moral: "Certamente, a filosofia pode continuar a explicar ainda hoje o ponto de vista moral a partir do qual imparcialmente julgamos algo como justo ou injusto; portanto, a razão comunicativa não está de maneira nenhuma à mesma distância da moralidade e da imoralidade. Mas coisa distinta é encontrar a resposta motivante à questão de porque é que temos de ater-nos às nossas convicções morais, de porque é que temos de ser morais. Neste aspecto, poderia talvez dizer-se que é vão querer salvar um sentido incondicionado sem Deus."

Vínculo inevitável entre moral e religião dá-se pela esperança, sobretudo quando se pensa nas vítimas inocentes. Aliás, Kant, teorizando sobre a autonomia da moral, postulou Deus pela exigência da esperança. Nessa linha, Paul Ricoeur falou "da carga da ética e da consolação da religião". Por isso, segundo Walter Benjamin, não é possível pensar a história sem teologia. E, neste contexto, Júrgen Habermas, referindo-se às vítimas inocentes e à dívida da história para com elas, cita Jens Glebe-Mõller: "Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, então temos de reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e do agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a esta realidade a tradição cristã chama Deus."
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 15 de Novembro de 2014

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

HAWKING E FRANCISCO*

1. Que disse o cientista inglês Stephen Hawking? "Antes de termos entendido a ciência, o lógico era crer que Deus criou o universo, mas agora a ciência oferece uma explicação mais convincente. Não há Deus. Sou ateu. A religião crê nos milagres, mas estes não são compatíveis com a ciência."
Pensa que o homem acabará por entender a origem e a estrutura do universo. "De facto, já estamos perto de conseguir este objectivo. Na minha opinião, não há nenhum aspecto da realidade fora do alcance da mente humana." Por isso, julga que a exploração espacial deve continuar e os grandes avanços científicos e tecnológicos neste domínio poderão "evitar o desaparecimento da Humanidade, graças à colonização de outros planetas".

2. O Papa Francisco veio afirmar que o Big Bang "não contradiz a intervenção criadora divina; pelo contrário, exige-a", desacreditando assim completamente os "criacionistas" e a sua leitura literal da Bíblia.
Duas declarações fundamentais. Por um lado, não há incompatibilidade entre o Big Bang e a fé no Deus criador, a evolução da natureza não contradiz a ideia de criação. Por outro lado, Francisco desfez a ideia infantil de um Deus mágico ou feiticeiro. Deus, que dá o ser a todos os seres, respeita a autonomia das criaturas, nomeadamente a autonomia do ser humano.
Textualmente: "Quando lemos no livro do Génesis o relato da criação, julgamos imaginar que Deus é um mago que com uma varinha mágica fez todas as coisas. Mas não é assim. Ele criou os seres e deixou-os desenvolver-se segundo as leis internas que deu a cada um, para que alcançassem o seu próprio desenvolvimento. Deu a autonomia aos seres do universo ao mesmo tempo que lhes assegurava a sua presença contínua, dando o ser a toda a realidade. E assim a criação prosseguiu a sua marcha por séculos e séculos, milénios e milénios, até transformar-se no que hoje conhecemos; precisamente porque Deus não é um mago mas o Criador que dá o ser a todas as coisas. O início do mundo não é obra do caos que deve a outro a sua origem, mas deriva directamente de um Princípio supremo que cria por amor. O Big Bang, que hoje se situa na origem do mundo, não contradiz a intervenção de um Criador divino; pelo contrário, exige-a. A evolução da natureza não se opõe à noção de criação, porque a evolução pressupõe a criação dos seres que evoluem".
O ser humano, que constitui na história da evolução "uma mudança e uma novidade", tem "uma autonomia diferente da da natureza": chama-se liberdade. Participando do poder de Deus, é sua missão investigar a natureza e as suas potencialidades, colocá-las com responsabilidade ao serviço da humanidade, salvaguardar a criação e "construir um mundo humano para todos os seres humanos e não para um grupo ou classe de pessoas privilegiadas".

3. Aí estão duas tomadas de posição frente ao enigma do universo, mais concretamente, do enigma da existência humana. Elas contrapõem-se, mas nem uma nem outra assenta na ciência. De facto, com argumentos científicos, não se chega a Deus, mas também não se demonstra o ateísmo. Deus não é objecto de saber científico. A ciência não sabe se Deus existe ou não existe. Quem afirma que Deus existe fá-lo baseado na fé, com razões. Quem afirma que Deus não existe fá- -lo também num acto de crença, com razões. Há razões para acreditar em Deus e razões para não acreditar.
Segundo as exigências do seu próprio método, a ciência não pode pronunciar-se sobre as grandes questões metafísicas. Mas, na presente situação do conhecimento científico, são os próprios resultados da ciência que desembocam num universo enigmático, aberto a um fundo último, misterioso, deixando o ser humano numa profunda incerteza metafísica, como escreve o neurólogo e filósofo Javier Monserrat. Quando se pergunta pelo fundamento último, o homem fica aberto a duas hipóteses metafísicas, não sabendo com certeza se se trata de um puro mundo sem Deus ou se o universo se fundamenta em Deus.
A imagem que a ciência segundo o modelo-padrão nos dá é a de um universo que se produz a partir do Big Bang e terminará numa morte energética, portanto, um universo finito e, assim, "um universo que nasce a partir de um 'fundo' desconhecido no qual ficará reabsorvido". A pergunta que então se coloca é como entender esse fundo ou "mar de energia", essa espécie de meta-realidade a que o universo está referido. O ateísmo poderia ser uma conjectura metafísica filosoficamente possível: "O metafísico seria uma realidade impessoal na qual se produziria de modo cego o nosso universo." Mas o teísmo é uma conjectura metafísica igualmente possível: "O metafísico poderia ser uma Inteligência Pessoal capaz de criar o universo."
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 8 de Novembro de 2014

domingo, 25 de maio de 2014

CÁRQUERE/Igreja de Nossa Senhora*

Parecem poucos os mais de 70 anos vividos por Afonso para tanto que realizou. Alexandre Herculano diz que sem esse príncipe "não existiria hoje a nação portuguesa e, porventura, nem sequer o nome de Portugal". Com muita fé, inteligência, destreza política, valentia, talento militar, ilimitada capacidade de risco-sem dúvida, mas também com um poder físico invulgar a que não dava repouso, combatendo, dormindo e comendo quando e onde calhava.
Pois este assombroso atleta nasceu e viveu os primeiros cinco anos tolhido das pernas.
Seu grande educador, Egas Moniz, perante esta debilidade do infante, sofreria tanto como os condes portucalenses, pais de Afono Henriques, e rezava por ele a Nossa Senhora.
Dividem-se as narrativas tradicionais. Segundo algumas, teria aparecido numa cavidade de velho carvalho uma imagem da Virgem Maria que logo ganharia fama de milagrosa e a ela dedicaria Egas Moniz uma igreja em Cárquere; outras dizem ter sido revelado em sonhos a Egas Moniz que mandasse escavar .em certo lugar e encontraria ruínas de antiquíssima igreja e uma imagem da Virgem. 
De uma ou de outra forma, Egas Moniz-proprietário da quinta de Resende e mais tarde senhor do couto destas terras por doação do nosso primeiro rei-mandou levantar sobre ruínas, que nem saberia de quando datavam, uma igreja para serviço dos cristãos e digna protecção da imagem encontrada, e sobre o seu altar colocou o pequeno infante, passando o nobre cavaleiro aquela noite em vigília frente ao altar. O menino curou-se e fez-se o homem que se viu.
Assim explicam as velhas crónicas o motivo da edificação da Igreja de Nossa Senhora de Cárquere; o povo repete-o há oito séculos e até hoje nenhuma prova em contrário se conhece.
O Morro das Procissões contém incalculável riqueza arqueológica, de onde saiu já volumoso espólio de lápides para museus de Lisboa, Porto e Guimarães.
O castro céltico que era Cárquere tornou-se depois importante povoação romana, mas quanto a provável existência pré-céltica nada se sabe, por enquanto.
Aventaram-se hipóteses acerca da igreja arruinada sobre a qual Egas Moniz edificou a de Nossa Senhora-teria sido templo pagão romano, talvez dedicado a Diana, depois suevo e visigodo, convertido mais tarde em mesquita muçulmana derrubada na Reconquista.
Referem ainda outras antigas vozes populares que o último rei visigodo, D. Rodrigo, não teria sido morto pelos Sarracenos na decisiva Batalha de Guadelete (711), mas fugira para o Ocidente e continuara lutando contra os invasores até morrer em Viseu, e que na fuga enterrara num destes cabeços um cofre cheio de preciosas relíquias, uma cruz e uns sinos.
À igreja de Cárquere, fundada quando D. Afonso Henriques era menino, acrescentou-se, perto de 20 anos depois, um pequeno convento que foi entregue aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho-para alguns autores a primeira comunidade do cenóbio era de monges negros, beneditinos.
A igreja situa-se num avançado cabeço da serra de Montemuro, verdadeiro maciço de grandes montes e soberbos vales que procuram o Douro e o Paiva.
Recuperava-se o povoado de Cárquere graças à igreja e ao pequeno mosteiro onde a vida correria tranquila neste lugar de acesso então algo trabalhoso, mas muito propício à meditação. Porém, talvez do isolamento, começou a comunidade dos "Crúzios" a deixar-se acomodar e a desleixar as exigências da regra, mesmo depois de D. João III entregar o cenóbio aos Cónegos de Santa Cruz de Coimbra.
No entanto, o Mosteiro de Cárquere, embora mantendo-se de cónegos regrantes, não se integrou na Congregação de Santa Cruz, à qual aderira a maior parte dos mosteiros agostinianos após a reforma da segunda metade do século XVI.
Pouco tardou nessa situação de certo desapego, pois o Papa Gregório XIII ordenou a extinção da comunidade de Cárquere, entregando-a à Companhia de Jesus, e as suas rendas ao Colégio que a mesma ordem edificara em Coimbra.
Os Jesuítas deram nova vida ao mosteiro instalando nele um hospício onde prestavam assistência aos moradores de Cárquere e recolhiam, tratavam e alimentavam gente pobre.
Após a expulsão dos Jesuítas em 1759, o Marquês de Pombal entregou o mosteiro e o padroado da igreja à Universidade de Coimbra. A partir daí, vazio e desprezado-só não abandonada a cobrança das rendas-, o mosteiro entrou em progressiva ruína.
Passou a igreja a pertencer ao padroado real do concelho de Resende e conservou-se como sede da paróquia de Santa Maria de Cárquere.
Classificada como monumento nacional e devidamente restaurada, a igreja conserva parte do seu carácter primitivo, românico do século XII. 
Na bela torre sineira, quadrangular, erguida no século XIII, junto à cabeceira, abrem-se janelas geminadas nas suas faces e o eirado constitui privilegiado miradouro das deslumbrantes panorâmicas de grandeza, formas e cores inolvidáveis.
Nos fins do século XIII ou princípios do XIV realizaram-se obras de vulto. A elas se deve a capela-mor, com abóbada de bem lançadas e executadas nervuras.
Mais tarde, no primeiro terço do século XVI, remodelou-se a nave-talvez por degradação do estado da primitiva-obras que lhe imprimiram o cunho manuelino que conserva.
O espaço interior, harmoniosamente proporcionado, envolve-nos num ambiente de austera religiosidade para o qual contribui a cor e a simplicidade da silharia.
As obras manuelinas vieram acrescentar elementos de elaborado decorativismo sem, no entanto, perturbar o sabor monástico; a elas se refere, com demonstração da beleza plástica da arte manuelina, Aarão de Lacerda: "...os arcos das portas, os do cruzeiro e do coro e a cachorrada da cornija".
Mas duas encantadoras peças escultórias enriquecem particularmente a valia estética da igreja. Uma delas mede pouco mais de um palmo de altura, delicado marfim que representa Nossa Senhora de Cárquere. A outra, de Nossa Senhora-a-Branca, foi esculpida no século XIV em calcário de Ançã.
Integrada no núcleo mais antigo da igreja, a capela dos senhores de Resende contém vários sepulcos de pessoas da nobre família.
As casa que restam do antigo mosteiro, restauradas, completam aprazível e belo conjunto arquitectónico.
*Texto transcrito d' "As mais belas igrejas de Portugal", vol. II,  de Júlio Gil e Nuno Calvet, colecção Património, Editorial Verbo.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

História do Externato D. Afonso Henriques*

O EXTERNATO EM BODAS DE OURO

O Externato D. Afonso Henriques está a celebrar 50 anos de existência e de trabalho.
Bonita idade para uma pessoa e para uma escola.
Vamos evocar os seus primeiros dias.
No início da década de sessenta do século passado, não havia ainda em Resende uma escola de nível secundário, aberta aos jovens adolescentes que pretendessem continuar os seus estudos, depois de concluído o exame da quarta classe do Ensino Primário.
Apenas existia o Seminário de Resende, desde 1928. Sendo porém um seminário, só podia acolher os moços da diocese que pretendessem ascender ao sacerdócio. Para os demais (rapazes ou raparigas), nada existia até então. Apenas podiam continuar os seus estudos os jovens cujos pais possuíssem rendimentos que lhe permitissem frequentar como internos um dos dois colégios que havia então em Lamego (o da Imaculada Conceição para meninas e o Colégio da Ortigosa para rapazes) ou o Liceu Latino Coelho, hospedando-se em alguma casa particular. E eram poucos, esses privilegiados. Muito poucos.
O bispo de Lamego, D. João da Silva Campos Neves, grande pastor e excepcional administrador, preocupado com a formação humana e cristã da juventude da diocese, começou a sugerir aos sacerdotes de cada concelho ou arciprestado que se implicassem na criação de escolas concelhias que facilitassem os estudos também aos jovens mais pobres a quem estava vedada a frequência de colégios e liceus.
Em Resende, agarrando a sugestão do ilustre prelado, um grupo de sacerdotes e de leigos entusiasmaram-se com a ideia, constituíram uma Sociedade de Ensino – “Sociedade de Ensino D. Afonso Henriques” -  e fizeram nascer o Externato.
Arrendado o fidalgo mas degradado edifício da Casa de Massas, então propriedade da senhora D. Maria Joana de Castro da Câmara Leme, aí começaram as aulas em Outubro de 1963.
A primeira acta da sociedade tem a data de 15 de Outubro de 1963. Dessa acta, constam como presidente da Assembleia-Geral o Pe. Manuel Cardoso, pároco de S. Romão, e membros efectivos da gerência, os padres Manuel da Fonseca e Armando Meneses, professores do seminário e o Pe. Artur Figueiredo, pároco de Anreade.
A referida sociedade foi legalmente constituída em 3 de Dezembro desse mesmo ano, por escritura lavrada no cartório notarial de Resende, a folhas 42 a 49 v. do livro nº 38 – B para Escrituras Diversas. Tratou-se de uma sociedade por cotas, e dela constavam como sócios fundadores: com seis cotas, no valor de trinta contos de réis, a Diocese de Lamego representada no acto pelo Pe. Manuel Mota de Sá; com uma, no valor de 5 mil escudos, as seguintes personalidades: Dr. Amadeu da Fonseca Sargaço (advogado); Dr. Albino Brito de Matos (advogado); António Loureiro Emídio (proprietário); Amílcar Teixeira Dias (funcionário público e ex-seminarista); Pe. António Cardoso Júnior (pároco de Barrô); Pe. Manuel Vieira Pinto (pároco de Paus); Pe. Adelino Teixeira, Capelão do Hospital da Misericórdia; Pe. Artur Figueiredo (pároco de Anreade); Pe. Fernando Teixeira Dias (pároco de Freigil); Pe. Manuel Cardoso (pároco de S. Romão); Pe. Manuel da Fonseca, Pe. Armando Meneses e Pe. António Santos Silva (professores do seminário); Pe. Alberto Ferreira, de Forjães (pároco de Queimada); Pe. Joaquim Andrade Ferreira (pároco de S. Martinho); Pe. Abel de Sousa (pároco de Cárquere); Dr. António Correia e Vale (advogado em Lisboa e casado em Cárquere); Pe. Antonino Duarte (pároco de Fontoura); e Manuel Ribeiro Choça, (bancário em Lamego e casado em Fonseca).
A escritura foi publicada no Diário do Governo – III Série, de 16 de Janeiro de 1964. O registo da sociedade na Conservatória do Registo Comercial de Resende tem a data de 5 de Novembro de 1966.
Ao longo dos anos, os sócios foram desistindo das suas cotas (doando-as, cedendo-as ou vendendo-as). Todas essas decisões foram legalizadas por uma escritura de 17 de Dezembro de 1986, data em que a “Fábrica da Igreja de Resende” passou a ser detentora de toda as cotas, mantendo-se desde então sua única proprietária.
Segundo reza a escritura de constituição, o objectivo inicial dessa sociedade de ensino era ministrar o ensino primário e secundário, de carácter particular.
O primário nunca funcionou nem era necessário funcionar, dado que em todas as freguesias estava garantido esse nível de ensino. Funcionou sim o ensino preparatório (Telescola) e o ensino secundário até ao antigo 5º Ano (9º actual), apenas com a interrupção de um ano (1977/1978), em que foi substituído pela Escola Preparatória (hoje EB2). Em Outubro de 1978, reabriu já nas instalações atuais, junto da igreja, para dar seguimento aos alunos que completavam o 9º ano na Escola Preparatória e não tinham então ainda em Resende outra escola para poderem continuar os estudos. Começou com alunos do 10º ano e continuou com os demais anos do ensino secundário, abrangendo também depois o 3º ciclo do Ensino Básico. 
Dirigiram o estabelecimento de ensino, ao longo  destes cinquenta anos: o Pe. Adelino Teixeira (1963-1966); o Pe. António José dos Santos Silva (1966-1972); o Pe. Manuel Mota de Sá e o Pe. António Martins Teixeira (1972-1977); o Pe. António Martins Teixeira (1979 - 1992); o Pe. Manuel Esteves Alves (1992-2007); e, actualmente, desde 2007, o Pe. José Augusto Almeida Marques.
De todos os externatos que se criaram nas sedes dos concelhos da diocese na mesma altura do de Resende, este é o único sobrevivente. Tal facto fica a dever-se à persistência do Pe. António Martins Teixeira e dos seus mais próximos colaboradores que merecem a nossa justa e sincera homenagem.
 Nesta benemérita escola, prepararam-se para a vida e para o futuro, inúmeros adolescentes e jovens do concelho de Resende e de algumas freguesias d’além Doiro (sobretudo Santa Marinha e Gestaçô), desempenhando hoje muitos deles altos cargos e serviços relevantes na sociedade: no Ensino, na Medicina e na Administração….
Honra ao Externato.
Louvor aos seus pioneiros.
Parabéns aos seus professores e alunos.
Que os êxitos continuem a ver-se e a sentir-se, para bem do concelho e da região.
*Texto da autoria do Padre Dr. Joaquim Correia Duarte, publicado no "Jornal de Resende", edição de Novembro de 2013


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