Vínculo inevitável
entre moral e religião
dá-se pela esperança,
sobretudo quando se pensa
nas vítimas inocentes
Após
conflitos e condenações, a Igreja reconheceu a legítima autonomia das realidades
terrestres, o que significa que, por exemplo, a ciência, a medicina, a
política, a economia se regem pelas suas própria leis, sem a tutela da
religião. Sobretudo quando se olha para o mundo islâmico, fica bem patente a
importância desta autonomia nomeadamente na política, exigindo a separação da
Igreja e do Estado.
Também a
moral é autónoma. Aliás, na perspectiva cristã, autonomia e teonomia acabam por
coincidir, na medida em que, se Deus cria por amor, então a plena e adequada
realização humana, que deve constituir a norma e o critério da acção humana
boa, coincide com a vontade de Deus, cujo único interesse são as criaturas
totalmente realizadas: a vontade de Deus é o bem da criatura. De qualquer
modo, a exigência moral não surge do facto de se ser crente ou não, mas da
condição humana de querer ser pessoa autêntica e plena, o que significa que,
como escreveu A. Torres Queiruga, "desde que um e outro queiram ser
honestos, não existe nada que no nível moral um crente deva fazer e um ateu
não". Assim, só para dar um exemplo, a propósito da jovem Brittany
Maynard, que decidiu a sua morte por suicídio assistido no passado dia 1,
depois de os médicos lhe terem diagnosticado um cancro incurável no cérebro,
que lhe causaria uma morte dolorosíssima: mesmo do ponto de vista cristão, está-se
perante uma situação de decisão moral legítima, no quadro da autonomia, que,
aliás, como é sabido, o famoso teólogo Hans Küng reclama também para si, ao
colocar-se a mesma possibilidade próxima: "Precisamente porque creio na
vida eterna, posso, quando for o tempo, com responsabilidade, decidir sobre o
momento e o modo da minha morte."
O que aí
fica dito não quer dizer que não haja relações entre moral e religião. Isso
acontece, por exemplo, quando se procura aprofundar o fundamento incondicional
e definitivo da moral. Neste sentido, veja-se este texto de Sigmund Freud, numa
carta a um amigo: "Pergunto-me a mim mesmo porque aspirei sempre a
comportar-me com honra, a mostrar consideração e afecto para com os outros,
sempre que as circunstâncias o permitiram. Perguntei-me permanentemente o
porquê disto, mesmo depois de dar-me conta de que me prejudicava a mim mesmo e
de que choviam os golpes sobre mim, porque as pessoas são brutais e
traiçoeiras, e não fui capaz de dar uma resposta a mim mesmo, o que está longe
de ser razoável."
A Escola
Crítica de Frankfurt é particularmente sensível neste domínio. Assim, Max
Horkheimer disse: "Visto sob o aspecto meramente científico, o ódio não é
pior do que o amor, apesar de todas as diferenças sociofuncionais. Não existe
nenhuma argumentação lógica concludente pela qual não deva odiar, se, desse
modo, não me causo nenhuma desvantagem na vida social. Como pode fundamentar-se
com exactidão que não devo odiar, se isso me causa prazer? O positivismo não
encontra nenhuma instância transcendente aos homens que distinga entre
disponibilidade e afã de proveito, entre bondade e crueldade, avareza e entrega
de si mesmo. Também a lógica emudece: não reconhece primado algum à dimensão
moral. Todo o intento de fundamentar a moral em prudência terrena, em vez de
fazê-lo a partir do ponto de vista do Além - nem mesmo Kant resistiu sempre a
esta tendência -, baseia-se em ilusões harmonizadoras. Tudo o que tem relação
com a moral baseia-se, em última análise, na teologia."
Jürgen
Habermas, que vê na religião uma capacidade especial de mobilização moral:
"Certamente, a filosofia pode continuar a explicar ainda hoje o ponto de
vista moral a partir do qual imparcialmente julgamos algo como justo ou
injusto; portanto, a razão comunicativa não está de maneira nenhuma à mesma
distância da moralidade e da imoralidade. Mas coisa distinta é encontrar a
resposta motivante à questão de porque é que temos de ater-nos às nossas
convicções morais, de porque é que temos de ser morais. Neste aspecto, poderia
talvez dizer-se que é vão querer salvar um sentido incondicionado sem
Deus."
Vínculo
inevitável entre moral e religião dá-se pela esperança, sobretudo quando se
pensa nas vítimas inocentes. Aliás, Kant, teorizando sobre a autonomia da
moral, postulou Deus pela exigência da esperança. Nessa linha, Paul Ricoeur
falou "da carga da ética e da consolação da religião". Por isso,
segundo Walter Benjamin, não é possível pensar a história sem teologia. E,
neste contexto, Júrgen Habermas, referindo-se às vítimas inocentes e à dívida
da história para com elas, cita Jens Glebe-Mõller: "Se desejarmos manter a
solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, então temos de reclamar
uma realidade que esteja para lá do aqui e do agora e que possa vincular-nos também
para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram
destruídos antes de nós. E a esta realidade a tradição cristã chama Deus."
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 15 de Novembro de 2014