Vida madrasta em Cárquere
Vim ao mundo no dia 1 de Setembro de 1935. Éramos seis irmãos (três rapazes e três raparigas). Fui o penúltimo a nascer; ainda cá continuamos três. A minha mãe foi mãe solteira. Foi servir para uma quinta do Enxertado, onde teve o primeiro filho do patrão, que era casado. A mulher não tolerou tal situação, tendo sido despedida. Mas a ligação ao antigo patrão continuou, tendo tido mais cinco filhos.
A minha mãe, que viria a morrer com 60 e poucos anos, só tinha uma casinha com um pequeno quintal e nada mais. Imagine as dificuldades que teve para nos alimentar e criar. Passámos muita fome. Havia dias que não havia nada para comer. Plantávamos umas couves no quintal, mas não duravam sempre. Recordo-me de ir pedir, mas só as pessoas mais abastadas, que eram poucas, davam qualquer coisinha. A maior parte das vezes, vinha com as mãos abanar. Os vizinhos também eram pobres. Mesmo que quisessem, não nos podiam ajudar. Não tínhamos nada para enganar o estômago. Era terrível.
Na altura não havia cá escola. Mas mesmo que houvesse, nunca iria para a escola. Como era possível aprender, cheio de fome? Onde iria arranjar dinheiro para comprar livros, papel e canetas? Comecei a trabalhar com sete anos. Oferecia-me para ir guardar as vacas e ovelhas para as lameiras e montes. Também ajudava em trabalhos nos campos. Deitava as águas, acartava sacos, rapava as ervas. Não ganhava qualquer ordenado; a paga era em géneros: pão, batatas, caldo…Com treze anos, comecei a trabalhar como ajudante de pedreiro e mineiro. Dei muitos dias nas terras do Presidente da Câmara Municipal de então. Ganhava à volta de catorze, quinze escudos por semana.
Na tropa
No dia 4 de Abri de 1956, fui para a tropa, para a Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, no Alentejo. Os primeiros dias custaram-me muito por causa das saudades. Não chorava por vergonha. Depois passou. Considero que foi uma sorte ir para a tropa. Ao menos, tinha onde comer. É triste ter de dizer isto, mas é a realidade. A vida em Cárquere era uma miséria.
A minha especialidade era a de apontador de obus 14. Frequentei a escola de cabos. Fui 1.º cabo. Na verdade, para ir para cabo era preciso ter o exame da 4.ª classe. E eu tirei-a. Esqueci-me de lhe dizer. É que entretanto, antes de vir para a tropa, construíram uma escola em Cárquere, tendo a respectiva professora ido viver para casa do Dr. Brito Dias. Foi ele que me incentivou a aprender a ler e escrever. Formámos um grupo de meia dúzia de pessoas e tínhamos aulas à tardinha ou à noite. Fiz o exame da 4.ª classe na véspera de S. João, na escola primária de Resende. A esposa do Dr. Brito de Matos, a Prof. Odete, também ajudou muita gente, pois ensinou muitos adultos a ler.
Fiz dezoito meses de tropa. Comparado com as dificuldades que tinha passado, a disciplina militar não me metia medo. Enfrentava sem problemas os desfiles, exercícios físicos, treinos de tiro, percursos nocturnos, corridas e outras manobras. Por mais dura que fosse aquela vida, tinha roupa lavada, cama e comida. Como não tinha dinheiro, nunca fui de fim-de-semana. Para matar saudades escrevia à minha mãe. Mas como eu, havia muitos. Poucos tinham dinheiro para vir às terras. Só os oficiais, sargentos e meia dúzia de soldados tinham esse privilégio. Aproveitávamos para dar uns passeios por Vendas Novas e arredores, pois não havia mais nada com que passar o tempo. Era uma vida sadia. Não havia televisão e jornais nem vê-los. Hoje em dia é o contrário. A malta nova vê televisão a mais e está sempre agarrada aos computadores e telemóveis.
Com as poupanças do pré, cheguei ao fim da tropa com 90 escudos. No quartel conheci uns colegas que eram de Sintra. Pelo que me apercebi lá havia muito mais oportunidade de arranjar trabalho. Como sabia que se voltasse para o nosso concelho me esperava a miséria, arrisquei ir para Sintra. De qualquer maneira, pedi para que o destino da guia de marcha fosse Resende, pois, se tivesse azar e não encontrasse trabalho, tinha a viagem paga.
Em Sintra
Lembro-me que era já noite quando cheguei à estação de Sintra. Não conhecia ninguém nem sabia que por aqui já havia muitas pessoas de Resende. Dirigi-me a um motorista de táxi e perguntei-lhe se conhecia alguém que me podia dar trabalho. Ele disse-me: “vai por aqui e por ali e encontra um matadouro, chegando lá desenrasca-se”. Fui dar a uma taberna. Comi lá qualquer coisa e consegui que me dessem cama nessa noite. Deram-me uma manta e dormi assim no chão. Ao outro dia indicaram-me um celeiro. Fui até lá e deram-me logo trabalho. Não hesitei, tendo ficado logo lá. O meu trabalho consistia em encher sacos e levá-los para a estação de comboios de Sintra.
Infelizmente, passadas duas semanas, a minha mãe mandou-me uma carta do Exército que chegou através do Regedor a informar que deveria apresentar-me novamente no quartel de Vendas Novas. Caso não o fizesse, era considerado refractário, podendo ser preso. Embora contrariado, lá fui. De Vendas Novas mandaram-me com outros colegas para Évora, onde fomos substituir uma companhia que tinha sido mobilizada para a Índia. Estive nessa cidade sete meses.
Findo este tempo, voltei para Sintra, mas já não fui para o celeiro. Procurei outra ocupação. Consegui arranjar trabalho na Quinta da Regaleira. Continuei a ir dormir a uma sala pertencente aos donos da tal taberna de que já lhe falei. Entretanto, soube que havia uma casa alugada a um dos trabalhadores que a subalugava a outras pessoas. Nas redondezas era conhecida como a casa dos malteses. E eu fui mais um. Aí estava mais à vontade.
Estive três anos na Quinta da Regaleira. Depois comprei um negócio por trespasse que se dedicava à venda e distribuição de leite. Para poder fazer isso comprei uma carrinha. O leite ia comprá-lo à UCAL (União das Cooperativas Abastecedoras de Leite de Lisboa) , na Portela, próximo de Sintra. Ia de porta em porta. Muitos fregueses pagavam-me a pronto, outros à semana e ainda outros ao mês. É claro que a alguns tinha mesmo de deixar fiado por mais tempo. À UCAL tinha de pagar diariamente em dinheiro vivo. Governei assim a vida durante cerca de dez anos. Trabalhava muito, mas também deu para comprar um terreno onde fiz uma casa, com um grande quintal.
Vim ao mundo no dia 1 de Setembro de 1935. Éramos seis irmãos (três rapazes e três raparigas). Fui o penúltimo a nascer; ainda cá continuamos três. A minha mãe foi mãe solteira. Foi servir para uma quinta do Enxertado, onde teve o primeiro filho do patrão, que era casado. A mulher não tolerou tal situação, tendo sido despedida. Mas a ligação ao antigo patrão continuou, tendo tido mais cinco filhos.
A minha mãe, que viria a morrer com 60 e poucos anos, só tinha uma casinha com um pequeno quintal e nada mais. Imagine as dificuldades que teve para nos alimentar e criar. Passámos muita fome. Havia dias que não havia nada para comer. Plantávamos umas couves no quintal, mas não duravam sempre. Recordo-me de ir pedir, mas só as pessoas mais abastadas, que eram poucas, davam qualquer coisinha. A maior parte das vezes, vinha com as mãos abanar. Os vizinhos também eram pobres. Mesmo que quisessem, não nos podiam ajudar. Não tínhamos nada para enganar o estômago. Era terrível.
Na altura não havia cá escola. Mas mesmo que houvesse, nunca iria para a escola. Como era possível aprender, cheio de fome? Onde iria arranjar dinheiro para comprar livros, papel e canetas? Comecei a trabalhar com sete anos. Oferecia-me para ir guardar as vacas e ovelhas para as lameiras e montes. Também ajudava em trabalhos nos campos. Deitava as águas, acartava sacos, rapava as ervas. Não ganhava qualquer ordenado; a paga era em géneros: pão, batatas, caldo…Com treze anos, comecei a trabalhar como ajudante de pedreiro e mineiro. Dei muitos dias nas terras do Presidente da Câmara Municipal de então. Ganhava à volta de catorze, quinze escudos por semana.
Na tropa
No dia 4 de Abri de 1956, fui para a tropa, para a Escola Prática de Artilharia, em Vendas Novas, no Alentejo. Os primeiros dias custaram-me muito por causa das saudades. Não chorava por vergonha. Depois passou. Considero que foi uma sorte ir para a tropa. Ao menos, tinha onde comer. É triste ter de dizer isto, mas é a realidade. A vida em Cárquere era uma miséria.
A minha especialidade era a de apontador de obus 14. Frequentei a escola de cabos. Fui 1.º cabo. Na verdade, para ir para cabo era preciso ter o exame da 4.ª classe. E eu tirei-a. Esqueci-me de lhe dizer. É que entretanto, antes de vir para a tropa, construíram uma escola em Cárquere, tendo a respectiva professora ido viver para casa do Dr. Brito Dias. Foi ele que me incentivou a aprender a ler e escrever. Formámos um grupo de meia dúzia de pessoas e tínhamos aulas à tardinha ou à noite. Fiz o exame da 4.ª classe na véspera de S. João, na escola primária de Resende. A esposa do Dr. Brito de Matos, a Prof. Odete, também ajudou muita gente, pois ensinou muitos adultos a ler.
Fiz dezoito meses de tropa. Comparado com as dificuldades que tinha passado, a disciplina militar não me metia medo. Enfrentava sem problemas os desfiles, exercícios físicos, treinos de tiro, percursos nocturnos, corridas e outras manobras. Por mais dura que fosse aquela vida, tinha roupa lavada, cama e comida. Como não tinha dinheiro, nunca fui de fim-de-semana. Para matar saudades escrevia à minha mãe. Mas como eu, havia muitos. Poucos tinham dinheiro para vir às terras. Só os oficiais, sargentos e meia dúzia de soldados tinham esse privilégio. Aproveitávamos para dar uns passeios por Vendas Novas e arredores, pois não havia mais nada com que passar o tempo. Era uma vida sadia. Não havia televisão e jornais nem vê-los. Hoje em dia é o contrário. A malta nova vê televisão a mais e está sempre agarrada aos computadores e telemóveis.
Com as poupanças do pré, cheguei ao fim da tropa com 90 escudos. No quartel conheci uns colegas que eram de Sintra. Pelo que me apercebi lá havia muito mais oportunidade de arranjar trabalho. Como sabia que se voltasse para o nosso concelho me esperava a miséria, arrisquei ir para Sintra. De qualquer maneira, pedi para que o destino da guia de marcha fosse Resende, pois, se tivesse azar e não encontrasse trabalho, tinha a viagem paga.
Em Sintra
Lembro-me que era já noite quando cheguei à estação de Sintra. Não conhecia ninguém nem sabia que por aqui já havia muitas pessoas de Resende. Dirigi-me a um motorista de táxi e perguntei-lhe se conhecia alguém que me podia dar trabalho. Ele disse-me: “vai por aqui e por ali e encontra um matadouro, chegando lá desenrasca-se”. Fui dar a uma taberna. Comi lá qualquer coisa e consegui que me dessem cama nessa noite. Deram-me uma manta e dormi assim no chão. Ao outro dia indicaram-me um celeiro. Fui até lá e deram-me logo trabalho. Não hesitei, tendo ficado logo lá. O meu trabalho consistia em encher sacos e levá-los para a estação de comboios de Sintra.
Infelizmente, passadas duas semanas, a minha mãe mandou-me uma carta do Exército que chegou através do Regedor a informar que deveria apresentar-me novamente no quartel de Vendas Novas. Caso não o fizesse, era considerado refractário, podendo ser preso. Embora contrariado, lá fui. De Vendas Novas mandaram-me com outros colegas para Évora, onde fomos substituir uma companhia que tinha sido mobilizada para a Índia. Estive nessa cidade sete meses.
Findo este tempo, voltei para Sintra, mas já não fui para o celeiro. Procurei outra ocupação. Consegui arranjar trabalho na Quinta da Regaleira. Continuei a ir dormir a uma sala pertencente aos donos da tal taberna de que já lhe falei. Entretanto, soube que havia uma casa alugada a um dos trabalhadores que a subalugava a outras pessoas. Nas redondezas era conhecida como a casa dos malteses. E eu fui mais um. Aí estava mais à vontade.
Estive três anos na Quinta da Regaleira. Depois comprei um negócio por trespasse que se dedicava à venda e distribuição de leite. Para poder fazer isso comprei uma carrinha. O leite ia comprá-lo à UCAL (União das Cooperativas Abastecedoras de Leite de Lisboa) , na Portela, próximo de Sintra. Ia de porta em porta. Muitos fregueses pagavam-me a pronto, outros à semana e ainda outros ao mês. É claro que a alguns tinha mesmo de deixar fiado por mais tempo. À UCAL tinha de pagar diariamente em dinheiro vivo. Governei assim a vida durante cerca de dez anos. Trabalhava muito, mas também deu para comprar um terreno onde fiz uma casa, com um grande quintal.
Na UCAL
Findo este tempo, a UCAL propôs-me a compra do trespasse do negócio com a consequente integração nos seus quadros de trabalhadores, o que aceitei. O meu trabalho era ir vender com um camião leite pelas lojas comerciais, restaurantes e cafés da região. Ia com um ajudante. Tinha um vencimento, mas também ganhava à comissão. Os produtos da UCAL eram bem aceites no mercado. Vendia embalagens de leite, manteiga, leite com chocolate, queijos, natas e iogurtes.
Trabalhei na UCAL trinta anos. Estou reformado há quinze. Foi mais ou menos na mesma altura em que a União de Cooperativas foi adquirida pela Parmalat. Este negócio, que aconteceu em 1993, deu na altura muito que falar. Dava a impressão que eles queriam tomar conta do leite em Portugal. E vieram com muita força. Pelo sim e pelo não, preferi retirar-me. Alguns dos meus colegas foram integrados na nova empresa. Recordo-me de se falar muito na Parmalat, mesmo antes de vir para Portugal, pois tinha sido pioneira na utilização de embalagens da Tetra Pak, o que permitia a longa conservação do leite. Isto fez com que tivesse muito sucesso. Ao destacar-se nos anos 70 como patrocinadora desportiva, com presença no Campeonato do Mundo de Ski e da Fórmula 1 e, mais tarde, no mundo do futebol, a marca tornou-se conhecida em todo o mundo. Por isso, os meus colegas viram a chegada da Parmalat com alguma confiança. Sei que em Itália os tribunais declararam a falência da empresa mãe em 2003, mas em Portugal nunca houve problemas, embora a competição sempre fosse grande. Como sabe, a Parmalat/Portugal alargou o negócio aos produtos de forno, sumos e bebidas, mas continua a apostar na imagem e marca UCAL. Por isso comercializa leites, natas e manteigas com a designação UCAL.
Na reforma
Já me esquecia de dizer que casei tinha eu 27 anos. Conheci a minha mulher na sede da UCAL. É natural daqui. Não tenho filhos. Tenho ainda dois irmãos vivos, como lhe disse no princípio da conversa. Um vive Resende e um outro aqui, na região de Sintra. Os que já partiram, um irmão morreu em Cárquere e duas irmãs no Brasil. Estas casaram, foram para o Brasil e nunca mais cá vieram. Sei que tenho sobrinhos, mas para lhe ser sincero nem sei quantos são. Há uns anos, uma sobrinha veio a Portugal conhecer as suas origens, foi a Resende e andou por cá. Esteve vários dias em minha casa.
Tenho passado bem a reforma. Não me tem faltado que fazer. Tenho um quintal com cerca de mil metros quadrados, onde tenho um pouco de tudo: couves, batatas, cebolas, feijão, tomate, alfaces, pepinos e algumas árvores de fruto. Ando sempre ocupado. E agora até demais, pois a minha mulher deu uma queda e tenho de cuidar dela, embora se levante e coma por ela. E agora é que vou perdendo as forças, pois ainda ia cultivando uns terrenos herdados pela minha mulher. Agora infelizmente andam lá umas ovelhas que nem sei a quem pertencem. Tenho pena, mas ninguém quer cultivar esses terrenos. Isto não acontece só por Resende. Nem cultivando de borla as pessoas querem. Talvez com esta crise as coisas mudem. Eu acho que têm de mudar. Por que é que há-de vir tudo do estrangeiro quando podemos cultivar nós? Nem que seja para evitar comprar nos supermercados, como eu faço. Poupo dinheiro e sei o que como.
Continuo a fazer 15 dias ou um mês de férias nas unidades hoteleiras do INATEL. Já estive quase em todas, embora aquela que mais frequentei tenha sido a do Algarve. Também já fui numa excursão à Madeira, Suíça e Espanha.
Estive em Resende oito vezes. Lembro-me muito dos tempos passados, mas acho que foram tempos difíceis. Foram dias de muita fome e de muito trabalho. Não havia futuro. Agora aquilo está muito mudado. Há estradas por todo lado, escolas, piscinas e mais lojas comerciais. No meu tempo, não havia tempo nem dinheiro para os mais novos se divertirem. A única coisa que me dá mais alegria recordar é a música, pois tocava realejo, e as desfolhadas, onde a gente se divertia. Ficam sempre recordações, mas encontro poucas que me tivessem dado felicidade. Ficaram-me as bonitas paisagens dos campos, da serra e do Douro. Espero que não aconteça aos mais novos aquilo que fui obrigado a fazer: ter de procurar trabalho noutras terras.
*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Janeiro de 2011