domingo, 31 de janeiro de 2016
O grande enigma (1) *
*Título da crónica de Anselmo Borges, publicada no DN de hoje, que pode ler aqui.
O grande enigma (1) *
*Título da crónica de Anselmo Borges, publicada hoje no DN. que pode ler aqui.
quarta-feira, 22 de julho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (11)*
Eu fui o mestre dos Padres de
Paus, fui o que lhes ensinei cantochão, e também fui o seu mestre de cerimónias
e ainda de Moral…
Todos os anos, na véspera de
Natal, visito no Fornelo, onde vivo, uns cinco ou seis pobres, que aqui há, e a
cada um dou uma quarta de bacalhau, e na Feira Nova, em casa da Brasileira onde
vou comer depois da minha missa, espalho pelos pobres umas três ou quatro
moedas de cinco réis. Assim, numa parte com seis quartas de bacalhau e na
outra com três ou quatro moedas de cinco réis, sou chamado honrado e caritativo. Ah! Que demência
se apoderou de ti!! Tu não vês que eu sou um murmurador, um caluniador, de
vivos e mortos, um intriguista, um invejoso, cujas qualidades se não compadecem
com a caridade?
Ah! Que só tendes habilidade para
despejar copos e nenhuma para conhecer os homens!!
Eu tenho tentos defeitos e tais
que, se as autoridades eclesiásticas tivessem deles conhecimento, já tinha sido
suspenso, deposto e degradado!! Tenho pecados tais que a Igreja nunca há-de rezar
por mim. Na minha terceira confissão, que hei-de fazer, vós vereis então quem
tem sido este impostor, que só para o mal tem talento!!
Ai de mim!...Tenho sido um cavalo
sem freio no precipício!!
Perdoai-me, meu Deus. A religião,
que com o vosso sangue plantastes no mundo, lucraria muito se eu nunca fosse
Padre…
Perdoai-me por esse sangue que
derramastes em jorros pela terra…
Perdoai-me, eu vos peço, pelo
amor de Deus, ó meus irmãos, por mim tão
ofendidos…
Ó serrano, confesso que te roubei
e, com juramento falso que dei contra ti,
expulsei-te das veigas risonhas, dos amenos prados de Portugal para essa
inóspita e insalubre região de África. Perdoa-me.
Infelizes serranas, que por minha causa sofreis tão tormentoso exílio
na vossa idade vigorosa e florescente, perdoai-me, e adeus até ao dia do juízo.
Nobres senhores da casa da
Soenga, que filhos de pais ilustres e recebendo deles a nobreza que tinham, a
pouco fostes arrastados pelos caminhos do opróbrio por mim, e por outros como
eu, perdoai-me também.
Jovens, que iludidos por mim
desertastes do exército sagrado de Jesus, moças que transviei do caminho da
honra e da virtude, perdoai-me.
Perdoai-me também mortos, ó
mortos; esquecido de que um finado tem tanto jus à sua boa fama como o vivo,
tenho faltado à caridade para convosco. As murmurações e calúnias, que tenho dirigido a vossos veneráveis ossos,
são as missas de réquiem que tenho celebrado pelo vosso eterno descanso.
Perdoai-me.
Adeus, caros leitores até breve.
Salus integra, tranquilla pax, multum
auri, et longa vita sint vobis. Amen
Paus, 25 de Novembro de 1889
O Abade de Barrô
Pe. Eugénio César d’Azevedo
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
segunda-feira, 20 de julho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (10)*
Não é também verdade que o Pe.
Diogo roubasse um Feliciano Monteiro, do Vale, vulgo o Feliciano. Eu, seu
vizinho, sei que o Pe. Diogo comprou ao Feliciano um prédio, que justou por cem
mil réis; que, tendo o vendedor recebido quase todo o preço da venda, se
recusou a fazer o título sem que o Pe. Diogo lhe desse 30:000 réis a mais; e
que finalmente concordaram que o Pe. Diogo lhe desse 15:000 réis. Fez-se o
documento, e o Pe. Diogo deu ao vendedor, além dos cem mil réis por que ajustaram, mais
15:000 réis, do que são testemunhas o Sr. Comendador Filipe José Rodrigues,
José Rodrigues, da Eira-Velha. Não admira que o Feliciano calunie o Pe. Diogo,
quem o conhece. Ouvi um trecho de sua vida. Um dia este Feliciano, ainda moço, sofreu das
mãos de seu pai um castigo, e o filho protestou vingar-se do pai, e assim fez.
Tinha o pai uma horta a partir
com outra, pertencente ao Pe. António Pedro dos Santos, então Cura da
freguesia, e o filho numa noite cortou todos os arbustos na horta do Padre,
lembrando-se que este culpava no corte das árvores o seu pai, como culpou. Este
Feliciano, que estando casado, possuía bastantes terrenos e ganhava pelo ofício
de oleiro muito dinheiro, não fez caso de sua mãe e esta seria vítima da fome,
se lhe não valesse outro filho. Nunca deu uma fatia de pão a um filho, que teve
de uma mulher solteira, e vendeu seus terrenos para os não herdar uma filha,
que tem legítima e muito pobre e com muitos filhos. Logo não é assombroso que
um homenzinho assim levante uma calúnia a um inocente, mas é admirável que eu,
que conheço este demónio, e sei que o Pe. Diogo o não roubou, o certifique ao
público.
Pouco me resta para dizer por
esta vez. Antes, porém, que termine,
digo e direi sempre que o Padre Diogo, que como homem há-de ter defeitos, como sacerdote
imperfeições e como professor faltas, não é nem foi ladrão nem matador; logo,
comparando-o nós no princípio dos nossos terceiros panfletos, cuja matéria é a
mesma dos outros, com o tigre, o leão, o leopardo e a pantera, mostrámos que
não temos ideia da história natural. Eu nunca a estudei, verdade e verdade.
Cumpre-me também confessar que a loja, que me elegeu seu chefe nos papelitos a
que me referi, diz que eu fui o mestre de todos os Padres de Paus, e que me não
falta o invejável predicado de caritativo. Acharíeis estas expressões num
estilo inchado? São estas verdades puras.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
quarta-feira, 15 de julho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (9)*
Cá torna o Francisco Cardoso d’Azevedo,
de Vilar de Barrô, o tabelião de notas. O Pe. Diogo não roubou a este vulto
80:000 réis, como ele diz, e nós o transmitimos ao público. Ele não lhe roubou
nem uma pena, porque roubar uma pena a um escrivão é um pecado grave.
Para José Rodrigues Paulino
embarcar recorreu ao Pe. Diogo para lhe arranjar dinheiro, e este Padre
tirou-lhe 70:000 réis a juro em Ferreirós em casa de José Rodrigues Caçador, e
nunca ocupou o Sr. Francisco Cardoso d’Azevedo. Mas vem cá, Francisco, se tu
abonaste no Porto a José Rodrigues Paulino, porque não exigiste dele um título?
Quando tu principiaste a pedir ao Pe. Diogo esta dívida, ele escreveu para o
Brasil ao Paulino, perguntando-lhe se era verdade dever-te esta quantia, e ele
numa carta que enviou ao Pe. Diogo, e que este conserva, diz que nada te deve e
que tu és um ladrão. Como queres tu que o Pe. Diogo te pague, sem te dever tal dinheiro? Ó Francisco, nem sempre se pode fazer do direito torto e do
torto direito.
É como o Sr. José Maria Pinto de
Meneses, da Feira Nova, da freguesia de S. Martinho de Mouros…Quem diria que
este meu amigo que, sem merecimentos, quer passar por um cidadão honrado,
também é um caluniador? Já lá vão bastantes anos que Lino José Rodrigues,
sobrinho do Pe. Diogo, pediu a este que lhe abonasse na loja daquele Sr.
Meneses um fato. O Pe. Diogo deu-lhe uma carta em que pedia ao Sr. José Maria
Pinto de Meneses que fiasse ao sobrinho uma roupa até 4:500 réis. Passado algum
tempo, o Pe. Diogo, vendo que o seu sobrinho por muito pobre não pagava,
dirigiu-se ao Sr. Meneses e deu-lhe 4:500 réis. O Sr. Meneses, abrindo lá o seu
cartapácio, disse ao Pe. Diogo: “ Você deve aqui 11:800 réis, e este é o abono que fez a seu sobrinho”. “Mostre a carta, que lhe dirigi”, disse o Pe.
Diogo. O Sr. Meneses não apresentou a carta, porque não lhe fazia conta. Depois
o dito Lino deu-lhe por vezes algum dinheiro, e hoje dever-lhe-á uns dois ou
três mil réis. Eis aqui em detalhe toda a história, e à vista dela o Sr. José
Maria Pinto de Meneses poderá queixar-se que o Pe. Diogo o roubou? Entendo que
o não deve fazer, sem se colocar na classe mais degradante dos homens. O Pe.
Diogo não roubou porque lhe pagou quanto tinha abonado; ele é que roubou o
Padre, porque o calunia.
E menos o Pe. Diogo roubou o José
Monteiro de Cardoso, como sem vergonha publicamos no nosso último panfleto,
composto por uns elementos de retórica dados à luz pelo José Terra da Feira, de
Fazamões, e ilustrados pelo mesmo José Monteiro. Este homem, tantas vezes ensarilhado
pelo diabo, tantas vencido por ele e outras tantas vezes dele vencedor, é meu
compadre e amigo, e serve-se do meu dinheiro. Como é muito grato, quis pagar-me
os meus favores, arranjando também a sua calúnia, que me ajudou a encher as
colunas do meu panfleto.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
sexta-feira, 10 de julho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (8)*
Mas para o mal temos muita habilidade.
Dissemos que o Pe. Diogo tem em casa uma amásia, que trouxe de Feirão. É falso.
Sua, nunca assaz chorada mãe, nunca
teve criada até à idade de 78 anos. Aqui perdeu as forças e sofria um pequeno
delírio. Por isso, seus filhos tomaram então uma servente para acompanhar a
pobre velha na amargura de seus dias derradeiros. Viveram unidas dez anos,
tempo em que o Pe. Diogo viveu fora de casa, entregue ao ministério paroquial.
Faleceu a mãe, e a sua criada caiu numa dupla enfermidade: dispepsia no
estômago e padecimento do peito. Como não tem bens nem pode trabalhar nem mendigar pelas
portas o sustento, era vítima da negra fome se fosse expulsa. Não tem , portanto,
uma amásia em casa, tem, sim, uma desgraçada a quem sustenta por esmola.
O Pe. Diogo não expôs filho algum,
como lhe imputámos. Acusámo-lo de um crime que ele não cometeu e que talvez
fosse indirectamente cometido por mim. Ouvi dizer que, aí pelo Arco, aparecera
à porta de uma casa habitada um infante abandonado, mas não sei quem expôs o
recém-nascido, nem o tal Casimiro argui o Pe. Diogo deste tão bárbaro
procedimento. Se eu nos meus panfletos, de tantas cores, quantas os pintores
sabem dar aos objectos que querem adornar, disse que o Pe. Diogo fora o que o
mandara colocar, isto foi num acesso de raiva canina, que muitas vezes me
combate. Esse menino era filho, não podia deixar de ser, de uma das mães a quem
eu arranquei do coração a crença religiosa. Não foi uma, foram muitas as
mulheres, que para chegar a meus depravados fins, e conseguir os meus danados
instintos, materializei, ensinando-lhes os inconsequentes dogmas dos Maniqueus
e Valdenses e negando-lhes a verdade da nossa santa religião. E estas pobres
mulheres, educadas por mim nos princípios erróneos da teologia pagã perverteram
outras.
Por direito eclesiástico são
excluídas do sacerdócio as mulheres; e porque obrou assim a Igreja? É porque as
mulheres, se fossem sacerdotisas, não tinham paciência nem força para calarem o
que soubessem pela confissão. Por isso, foram excluídas.
As minhas amásias, ensinadas por
mim, não se calaram, ensinaram a outras as minhas péssimas doutrinas: daqui o
haverem tantas mães sem fé, e daqui tantos abandonos de crianças.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
quinta-feira, 9 de julho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (7)*
Dissemos também “que Pe. Diogo,
suspenso de pregar e confessar, se asilara em casa de um Pe. Nicolau da Silva
Dias, morador na Rua dos Rumulares, em Lisboa; que, enquanto este fez uma
digressão, Pe. Diogo, arrombando-lhe a porta do quarto e uma cómoda, lhe roubara 1:500:000 réis, convencendo-o de
que foram os larápios”.
Isto é uma fábula, e das suas
entranhas saem as provas. Pe. Nicolau não podia acreditar que o conto e
quinhentos mil réis fossem roubados pelos larápios, porque, se o roubo fosse
praticado de dia, enquanto o Pe. Diogo foi passear, os ladrões tinham de arrombar
a porta da rua. Qualquer casa em Lisboa tem, pelo menos, quatro andares, e cada
um é habitado por seu inquilino. Na ala oposta da rua há lojas de comércio e
artistas; o povo sempre em fluxo e refluxo, e além disto vigia sempre a
polícia. Poderiam os larápios arrombar uma porta sem ser apercebidos? Se o
roubo fosse feito de noite, Pe. Diogo, que estava dentro, e os criados ou
criadas do Pe. Nicolau não haviam de gritar por socorro, e este não lhes era logo
ministrado? Logo, se o Pe. Diogo dissesse a Pe. Nicolau que o dinheiro foi
roubado pelos larápios, ele não o aceitava.
Os gazeteiros, para encherem as colunas dos seus jornais,
aproveitam os factos mais insignificantes, nem um furto de seis vinténs lhes
escapa. Seria possível que não dessem notícia de um roubo de 1:500:000 réis,
feito por um padre a outro padre, seu benfeitor? Pe. Diogo veio da Extremadura
há vinte e um anos, e ninguém até hoje o arguiu de tal roubo. Só agora o
arguimos eu e o professor. Notem os leitores: nos outros panfletos pintámos o
roubo feito por um modo e, nestes últimos, por outro. Primeiro se pilha um
mentiroso do que um coxo.
Mais calúnias. Dissemos “que o Pe.
Diogo tentara matar o Pe. Geminiano José Gomes, então pároco de Paus, para se
colar na igreja; que, para tal fim, embriagara certos indivíduos, e que de certo
era vítima, se não lhe valessem o Pe. Eugénio César Azevedo, Pe. Joaquim
António Dias de Oliveira e José Pinto, das Quintãs, e a sua prudência,
fechando-se três dias em casa”.
A falsidade desta asserção
manifesta-se de todos os lados.
Pode-se crer que o Pe. Diogo
mandasse matar o seu pároco por uns homens bêbados, num Domingo, na igreja ou
no adro, em presença de tanta gente, ali reunida nesse dia para assistir à festividade
de S. Sebastião? Se o Padre Diogo quisesse matar, ou mandar matar, o pároco,
aproveitaria as trevas da noite para embeber o cruel punhal no sangue do seu
colega, e assim não se sabia qual a mão assassina.
O Bispo diocesano colaria nesta
igreja um padre que tivesse morto o seu pároco, e o povo não se oporia a uma
tal apresentação? Se por ventura a morte fosse mandada fazer, como dissemos,
por homens bêbados, nós, os três, que afirmamos, lhe valemos, que seríamos
contra homens robustos, armados e dispostos para a sangrenta empresa?
Desapareceríamos diante deles, como o pó diante da face do vento.
E o ódio do Pe. Diogo contra o
seu pároco, ódio que pintamos com as tintas mais carregadas, podia extinguir-se
nos três dias em que o pároco se fechou na sua residência?
Na verdade, um homem, dotado de um talento medíocre, conhece à
primeira vista que ninguém, dotado de razão, planeava assim um assassinato. E
nós, pobres de filosofia, nem nos recordamos que nossos papelitos haviam de
subir às mãos de leitores hábeis, de homens de lógica, que nos haviam de
censurar nossos erros, asneiras, brutalidades, burricadas, cavaladas e
absurdos!!!...
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
segunda-feira, 6 de julho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (6)*
Cúmulo da malvadez.
Atestámos “que Pe. Diogo, dizendo missa há pouco, espancara
Maria Piôrra e que ela daí a pouco era cadáver”.
Se Pe. Diogo, ou outrem,
praticasse um acto tão desumano e das pancadas resultasse a morte da espancada,
o Ministério, ainda que não houvesse testemunhas oculares, procedia ex officio a um exame a um exame e corpo
de delito. Mas no arquivo do registo criminal não apareceu esse documento.
Se nós soubemos desse crime,
porque não acusamos seu autor, sendo nós tão inimigos seus? Porque nos não
oferecemos para testemunhas? Para que deixámos impune um réu do maior dos
crimes?
Além disto Pe. Diogo diz missa há
36 anos, e a dita Piôrra faleceu há pouco e de morte natural.
Demais a mais, de 1853, ano em
que Pe. Diogo recebeu a sagrada ordem de presbítero, ninguém acusou este Eclesiástico de um tal
crime e só agora é arguido, e só por nós, porque eu sou o abade de Barrô, e o
outro o professor de S. Martinho de Mouros…
Queixámo-nos “que Pe. Diogo
convidara Manuel da Silva Paiva para me assassinar e que, não se prestando este
a praticar o acto, encarregara esta empresa a Assenso do Fornelo para se colar
na então minha igreja”.
Ó professor com quem nos
compararemos? Os sacerdotes da Judeia, que semelhantes ao demónio, que sem
proveito faz mal, devorados da inveja desse cruel abutre que lhes roía as medulas para darem a
morte a Jesus, o mataram primeiro com a espada da língua, seriam piores que eu
e tu? Meus caros leitores, escutai agora a verdade:
Nos meus princípios vivia eu,
como pároco de Paus, na casa da residência paroquial, nas Lages. Esta pobre
casa era a toda a hora assaltada por essas belezas, que eu amava. Comiam-me
tudo. Não me escapava o pão da giga nem broas do forno, levavam-me as batatas
lá do canto da sala, a carninha da salgadeira, nem me deixavam os lençóis, e
nem os meiotes. Vi-me pobre, e mal vestido de cotim, não via dez réis. Assentei
então fugir desta casa, como fugi, e fui abrigar-me no Fornelo, na minha casa
paterna.
Como meus fregueses se queixavam
de mim por eu não residir ao pé da igreja, para me desculpar, principiei a
dizer que me tinham feito esperas para me matarem e que, por esse motivo, me
retirara. Nessa ocasião não culpei ninguém. Agora quis matar moralmente o Pe.
Diogo, inventando para esse fim a matéria que pude: sim, disse que ele me
mandara matar, quando o Pe. Diogo não era, nem é capaz de matar um cão, esse
maior amigo do homem, o símbolo da gratidão, da felicidade e do amor.
Inventei também que
este padre atentara contra a vida de Filipe José Rodrigues. Pe Diogo José
Rodrigues, se lhe dessem o ceptro de todo o globo terráqueo, que habitamos e
com ele todas as riquezas, não arrancava a vida nem a um seu inimigo, e muito
menos ao Sr. Filipe, porque é seu irmão e amigo e cuja vida preza tanto como a
sua.
Dissemos que o Pe. Diogo
intrigara o pároco da freguesia para onde foi nos subúrbios de Lisboa.
A freguesia em que o Pe. Diogo
esteve é Nossa Senhora dos Prazeres d’Aldeia Galega da Merceana, concelho de Alenquer,
à distância de Lisboa de dez léguas, e o
Pároco, que tem o título de Prior, é dos arrabaldes de Braga. Para fazerdes uma
ideia deste Padre apresentar-vos-ei uma página da sua vida. Ei-la: tinha ele um
jumento, que era de uma cor muito pretinha, corpulento, vivo e fino. O Padre
tratava muito mal o pobre bruto, e este não sabia como havia de fazer a vontade
ao Padre, por que este não o sabia dirigir. Numa bela manhã apareceu morto na
estrebaria o animalejo, muito inchado, com a boca aberta e dentes arreganhados.
O Padre pega de uma cachamorra e descarrega pancadas sem número sobre o ventre
do orelhudo, que foi infeliz na vida e na morte. Como o burro estava muito
inchado, as bastonadas produziram um eco como as dos tambores. As mulheres,
pensando que o Prior tinha em casa algum descante, correram para lá apressadas.
Chegando e vendo o pároco a descarregar cachamorradas no jumento cadáver,
perguntaram-lhe a razão, por que assim tratava o triste animal, e ele respondeu
“pois este diabo nunca me fez a vontade em vida e ainda agora morre a rir-se e
a fazer escárnio de mim”.
Tal é a lógica do Padre e quem
assim pensa não admira que tenha uma indisposição com um padre qualquer, e que
alguém a tenha com ele.
É certo que este Padre e o Pe.
Aniceto Rodrigues d’Oliveira não eram amigos do P.e Diogo, e o Pároco d’Aldeia-Galega
escreveu-me uma carta perguntando-me qual fora a conduta do Pe. Diogo nesta
terra. Se lá tivessem matéria para o suspenderem não lhes era necessário vir
aqui buscá-la.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
quinta-feira, 2 de julho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (5)*
Por mil insídias, por mil
intrigas, por manejos mil, um há seis anos e outro há mais de trinta,
pretendemos enterrar no túmulo do opróbrio o filho, não escapando a mãe, que
nunca nos ofendeu, ao nosso furor tigrino.
Dissemos em nossos panfletos que
o Pe. Diogo descendera dos mais afamados larápios de Paus e que sua mãe, além
de ser amestrada na ladroíce, foi de tal forma prostituta que, sendo eles
quatro irmãos, nenhum pode com verdade dizer qual foi seu pai.
Empurrar, depois de morta, uma
mulher que nunca foi acusada de furto, porque nada roubou e provou a
paternidade de seus filhos, tanto que herdaram de seus pais. Lacerar a honra e a reputação daqueles, qui ex hoc saeculo transierunt, e por
isso já não podem defender-se, isto é só próprio de quem não tem educação nem
caridade, nem piedade, nem crença religiosa. Isto é só próprio de mações!! E os
mações que mais diriam ou fariam? Se Josefa Maria, mãe do Pe. Diogo e Pe. José,
pudesse alevantar-se da vala cerrada da
sua sepultura, gritaria contra o insulto póstumo que nós dirigimos a seus
ossos. E os filhos, se nós, os covardes,
nos assinássemos, vingariam, assaz em demasia, pelas leis, tantas calúnias
estudadas contra uma finada, que foi dotada de magnânimas virtudes. Se Josefa
Maria, solteira, teve um lapso contra o sexto preceito do decálogo, que fez
ela, que eu em maior escala não praticasse? Eu, que desde os 12 anos prostituí
tantas donzelas, adulterei com mulheres casadas e abusei de muitas viúvas,
sendo um Padre, um Pároco e um pregador? E ainda hoje, sendo um “candelho”,
ando amancebado!!
E tu, ó professor, meu dilecto
discípulo, hipócrita, vês o argueiro no olho do teu próximo e não vês uma trave
no teu? Tu, que sendo casado com uma mulher católica, casaste com outra civilmente
para lhe apanhares os 4 contos de réis?!
Afirmamos que Pe. Diogo roubara
uma navalha ao honrado Abade de Felgueiras. Mentimos. Este abade, quando cursou
em Lamego as aulas, perdeu uma navalha, que custaria 200 réis. Passado algum
tempo, Pe. Diogo achou-a e entregou-lha em sua casa, em Felgueiras, em 1852,
pouco depois das exéquias de António Joaquim Cardoso, de Cardoso, freguesia de São
Martinho de Mouros. Não lha roubou, achou-lha e restituiu-lha. Se o abade disse
ao meu discípulo que Pe. Diogo lhe roubou a navalha, aprecia pouco a honra de
um seu colega, parente e a sua própria. Continuam as calúnias.
Asseverámos que o Pe. Diogo
escrevera umas cartas “aleivosíssimas ao Pe. Gil, a Bento José da Silva e a outros”.
Pe. Diogo e Pe. Gil foram desde crianças amigos e ainda hoje o são, e nesta
amizade mútua não tem havido eclipse. Enquanto a Bento José da Silva, este
recebeu uma carta sarcástica que foi escrita por um estudante ditada por outro
e remetida ao dito Bento. Passado algum tempo, o escritor revelou o segredo e,
como a carta indirectamente me feria mais a mim do que a Bento por eu andar
nesse tempo amancebado com uma filha dele, fui dizer ao mesmo Bento quem tinha
ditado e quem tinha escrito a carta e, sem o saber, ajuntei que o Pe. Diogo fora o
principal autor da carta. Eu costumei sempre dar juramentos falsos. O Bento não
chamou o escritor a uma polícia correccional por ele lhe ter revelado quem
tinha forjado a carta. Também não puniu o ditador, porque a sua família deu
dinheiro ao Bento, e só quis castigar o Pe. Diogo, porque eu lhe pedi e me oferecei
como testemunha e, por isso o Bento chamou-o a uma polícia, mas não se provou
que o Pe. Diogo fora cúmplice. Conheço os dois estudantes que hoje são padres e
sei que o Pe. Diogo não concorreu para essa carta. Porque disse que o Pe. Diogo
mandara cartas aleivosíssimas ao Bento? Porque sou mau e invejoso.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (4)*
Diz-nos a dialéctica que todo o
ente tem um fim da sua criação, mas o meu fim é procurar a ruína moral da
sociedade. Tendo ensinado muitos discípulos, o mais hábil, o mais talentoso foi
José Pinto da Fonseca, professor em S. Martinho de Mouros. Este meu aluno
aprendeu tanto que até fez um casamento civil.
Diz ele nos nossos segundos
papeluchos que, se promoveu tal casamento, é porque o Buena-Flor lhe prometera
receber, depois, a mulher catolicamente.
Ó professor, não mintas. Nessa empresa só te lembrava o dinheiro do Buena-Flor,
e o que menos te lembrava era a sua alma e Deus. Saiu melhor o discípulo que o
mestre. Tu arranjas daquelas que te dão aos quatro contos, e eu só daquelas
que, sem me varrerem o pó das salas, me alimpam tudo. Sim, quando era novo como tu
agora e tinha como Salomão as minhas mil concubinas, não tinha nem dez réis. O
que me valeu foi casar com a minha Josefa: agora sim, já tenho junto alguns
cobres.
Serranas, choro a vossa sorte,
lamento a vossa desgraça e aconselho-vos a penitência para que vossas almas não
desçam ao Averno.
Já é tempo, meus caros irmãos, de
me confessar da injusta guerra que declarei a Pe.Diogo José Rodrigues e a sua
mãe, hoje defunta.
Para isto precisava de um estilo
grandíloquo, mas pobre de mim, que sendo português, não sei falar bem este belo
e rico idioma. Todavia vamos lá, e seja-me permitido principiar de mais longe
para que a narração se torne clara aos da cidade de Lamego e a outros mais
remotos.
José Pinto da Fonseca, professor
na freguesia de S. Martinho de Mouros, sonhou uma vez que havia de haver a
fortuna de um Buena-Flor, seu vizinho, cuja fortuna era de uns 8 contos de
réis. Para conseguir os fins empregou os meios: cuidou de criar relações com
Buena-Flor, e mais íntimas com a criada dele. Buena-Flor adoece, e lembra-se ou
lho lembrou o professor de receber a amásia civilmente. Ao menos foi o
professor quem consultou o Doutor Barata sobre o modo como se podia efectuar o
casamento. Foi ele quem arranjou os papéis
respectivos e foi ele que, em nome de Buena-Flor, recebeu a sua amásia
em Resende na presença do Administrador, que então era José Bernardino, de Viseu.
Mais tarde, Buena-Flor teve
ciúmes da mulher com o dito professor e, na verdade, houve essa cópula quando ela
era solteira e depois de casada. Por consequência, Buena-Flor legou todo o seu
pecúlio à Santa Casa da Misericórdia do Porto. Mas como o casamento civil
produz, como o católico, efeitos civis, a mulher tinha direito a metade do
dinheiro. Morre o pobre homem, e o professor liquidou a metade do espólio em
favor da viúva. E como ela não sabia administrar o dinheiro, deu-o ao
professor. Sonhou com os 8 contos, vieram-lhe 4…
Tendo-se dado este casamento
civil, horripilante para todo o cristão, Pe. Diogo José Rodrigues,
desta freguesia de Paus, na tribuna sagrada da Igreja de S. Martinho de Mouros,
disse que o casamento civil era concubinato e uma invasão dos direitos do
pároco. O professor que tinha feito ou aconselhado este casamento e eu, que o tinha aprovado, não levamos a bem que Pe. Diogo o combatesse.
Este o motivo por que por três
vezes espalhámos por esta comarca, e suas confinantes, uns impressos em que
como cutelo da calúnia verberámos o Pe. Diogo e sua boa mãe.
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
segunda-feira, 29 de junho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (3)*
Mandei dar umas pedradas por um
meu afilhado no Assenso do Fornelo. Este homem escapou, porque lhe valeram as
pernas.
Confesso também que roubei José
Ribeiro de Amorim, do Vale. Tinha este um prédio rústico, chamado Cabreira com
sua casa no meio, onde recolhia lenha. Sabia eu onde ele escondia a chave, e
para fazer os meus magustos com uns pândegos como eu, roubava-lhe a lenha. Isto
é ser ladrão.
O que, porém, me magoa mais nesta hora é uma negra
ingratidão que pratiquei para com o pobre serrano do Vale. Este homem possuía,
no dito Vale, um prédio rústico fertilíssimo e de bom gosto. Ambicionei este
terreno, e por isso falei-lhe para mo vender, e para o mover a vender-mo,
prometi-lhe nunca lho tirar e de o conservar como caseiro enquanto ele vivesse.
O pobre achava-se endividado. Caiu em
logro por dois motivos: alentava a
lisonjeira esperança de fabricar o prédio de meias enquanto fosse vivo; e
fiava-se em mim, porque não me conhecia.
Por estas razões, vendeu-me o campo. O preço fi-lo eu; pilhei-lho por
metade do que valia, e este meio preço paguei-lho às fornadas de milho e às
meias moedas, que colhia de sermões. Mal pago o campo e havido o título,
expulsei-o do prédio. De pobre que já era, reduzi-o a um pobre mais pobre; e não só o expulsei do campo, mas até o
degradei com três filhas de Portugal com um juramento falso que dei contra eles
no tribunal de Resende. Coitado! Teve de mudar-se com as filhas para a África,
onde lhe cavei a sepultura!! Ó pobre serrano, quando te viste nas costas da
África debaixo desse sol abrasador, mormente quando te viste a braços com a cruel e desumana parca. E ali aberta a negra cova, que te havia de
recolher, dizias: ali está a medalha que o Abade de Barrô me deu pela honra das
minhas filhas, ali está o preço das minhas terras, que me comprou e não pagou.
E vós, ó tristes serranos a quem
eu, como ministro do Senhor, devia dirigir pela carreira da virtude e a
quem, como cavalo sem freio, desencaminhei e perverti, perdoai-me o meu brutal
procedimento e os meus crimes para convosco, para que não sejam a minha morada
as catacumbas do inferno.
Desventuradas mulheres, cá, à
distância de inúmeros quilómetros, vou falar convosco, em tempos minhas amigas.
Segundo as acertadas medidas da Divina Providência, é muito raro encontrar-se
um ente que tenha a propensão para todas as artes essenciais. Eu, infelizmente,
sou sábio na opinião dos que não sabem avaliar-me: passo por um filósofo, e não
sou mais que um ímpio; por um retórico, mas sem regra; teólogo no erro;
canonista na vaidade; moralista no desconcerto, na mentira, na intriga, na
murmuração e na calúnia; um mestre. E tal é a arte para que nasci.
Para ostentar sabedoria a quem me
não conhecia, asseverava que lera isto
ou aquilo neste ou naquele livro sem o ter nem comprar nas livrarias. Ensinava
o que a minha razão desvairada me ditava, embriagando-me na mentira para que
tenho engenho e arte.
domingo, 28 de junho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (2)*
Nesta freguesia, esquecido do pasce agnos meos, pasce oves meas, deixei, muitas vezes, a freguesia só, e morreram-me muitas almas sem sacramentos.
Logo não me pertenciam todos os emolumentos, que chuchei; logo sou ladrão.
Confesso que não fui talhado para
padre, e muito menos para pároco, mas sim para representar farsas no palco.
Estou lembrado, meus caros patrícios, que representei no Fornelo, numa casa
que foi de José Carlos, uma farsa inocente, aparecendo no tablado com a cabeça
enfeitada com os ramos ou galhos de um carneiro. Pior fiz em Paredinhas. Indo mascarado a este
povo a uma descamisa de milho, aqui cheguei, visivelmente, as minhas partes pudibundas à
cara da mulher de Luís Alves – o velho.
Indo, já era padre, visitar,
muitas vezes, o meu vizinho tenente do Fornelo, sua esposa e quatro filhas, no
meio desta gente civilizada, perguntava eu a um pequeno que levava comigo, lá
parente de minha mulher, que para mim é tudo: ó meu menino, onde é que tu és
mais bonito? O menino, previamente instruído por mim, respondia: mais bonito
sou aqui, pondo as mãos sobre as partes genitais. Depois de lhe armar uma
gargalhada cá do meio da garganta para cima, perguntava ao mesmo menino: qual é
o pai das gentes? E ele tornava a colocar a mãozinha no mesmo sítio. Ora isto é
que é ser bem educado!!!
E que direis vós se eu confessar
que já concorri para a morte de um pároco? Sim, na patuleia, o meu pároco, o
infeliz Pe. Manuel Vitorino de Sousa Cardoso era afeiçoado à política
cabralista, e o morgado de Córdova, acompanhado duma guarnição, pugnava contra
o ministério. Entre o padre e o morgado não reinava amizade recíproca, e por
isso a vida do padre na patuleia achava-se arriscada. Fugiu de Paus, e o Sr.
Bispo D. José de Moura Coutinho, este sábio e benigno Prelado, mandou-o para
encomendado da freguesia de Samodães, onde, por motivos para mim incógnitos,
não pôde conservar-se, e por isso refugiou-se em Lamego. Com fim de agarrarem o
morgado vinham a Paus soldados do nove de Lamego. Como na freguesia lhe
disparassem alguns tiritos, a tropa queimou alguns edifícios e fez algumas
mortes. Daqui o morgado e outros tiraram matéria para acender e ódio do povo
contra o padre, dizendo que, se a tropa
vinha a Paus, era mandada pelo padre, e
que era ele quem mandava queimar estas e aquelas casas e fazer estas e aquelas
mortes. A plebe, em toda a parte bruta e fanática, engoliu esta impostura,
ficando convencida de que o padre era a causa dos incêndios, roubos e do
derramamento de sangue. Eu, que devia defender o meu colega, que devia tirar ao
povo esta cizânia, eu, que devia dizer-lhe que um regimento anda às ordens do
governo e não ao mandado de um padre, também dizia com o povo, que o padre era
a causa dos estragos.
Terminada a tempestade, bastante
tempo depois, regressando este sacerdote à sua freguesia, foi assassinado. Se
eu disse com o povo, que ele era o causador das ruínas, concorri indirectamente
para a sua morte.
sábado, 27 de junho de 2015
Confissões do Padre Eugénio César d'Azevedo, natural de Paus (1)*
P.e Eugénio César d’Azevedo, da
freguesia de Paus, concelho de Resende, abade mercenário de Barrô, e capelão do
Senhor do Calvário, tendo feito a minha primeira confissão em 15 de Maio do ano
corrente, em que me acusei de que fui um filho feroz para com meu pai, um
péssimo irmão, um ingrato para com os meus amigos e benfeitores, um Sansão na
prostituição, um juramenteiro falso, um escarnecedor da virtude, um apologista
do vício, um semeador de doutrinas heterodoxas, etc., o que tudo fui, passando
agora a fazer a segunda, que ainda não é completa, confesso primeiramente que
fui, sou e hei-de ser, até depois da minha morte, ladrão e um grande ladrão.
Fui 22 anos pároco em Paus, terra
que me deu o berço, e aqui, de pastor de almas que devia ser, tornei-me em lobo
de redil. Deixei de fazer muitos e muitos assentos de baptismos, casamentos e
óbitos. Todo o homem carece de provar o seu baptismo, não só uma, mas muitas
vezes. Os jovens não podem casar sem provarem que foram baptizados, porque o
baptismo est janua sacramentorum. Um
filho para haver uma herança de seus pais, avós, ou de qualquer consanguíneo;
um irmão para se habilitar a herdeiro doutro irmão; este para conseguir um
emprego; aquele para embarcar; um para se ordenar; outro para se livrar de
jurado; enfim, todos têm necessidade de justificar seu baptismo.
Ora, deixando eu de fazer muitos
assentos desta natureza, e importando cada justificação em 4.500 réis, quantas
libras não roubei eu às outrora minhas ovelhas? Se estas justificações têm sido
precisas, e se se fizeram no tempo pretérito, se o são agora e o hão-de ser no
futuro, não fui, não sou e não serei depois da minha morte ladrão?
E, se da falta de assentos de
baptismo, resultam tantos inconvenientes e gravame de despesas, que danos se
não seguem da falta dos de casamento?
Se um consorte aborrecido do
outro, quiser separar-se dele, alegando que não está catolicamente casado, como
poderá o consorte inocente provar o seu matrimónio, não havendo o respectivo
assento no livro de registo, tendo falecido o pároco que lhes assistiu e as
duas testemunhas? Os filhos de um tal matrimónio serão considerados como filhos
naturais, e os parentes ascendentes ou laterais de seus pais disputar-lhes-ão a
herança a que têm a tanto direito. E não serão somente estas as consequências,
dar-se-ão outras, tanto e mais lamentáveis…
Se parece que os assentos de
óbitos não são de suma importância, é uma ilusão. Os certificados de óbito são
para diversos fins indispensáveis.
Ora, deixando eu de fazer muitos
assentos destas três espécies, não sou ladrão? Faria meus os proventos que
percebi? Não roubei, portanto, as minhas ovelhas de Paus?
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.
terça-feira, 20 de janeiro de 2015
O SAL E A RELIGIÃO*
A propósito dos trágicos e bárbaros
acontecimentos em Paris
ficam aí algumas reflexões
1. Estamos confrontados com a questão do outro. Somos, por natureza,
sociais: fazemo-nos uns aos outros, a nossa identidade é sempre
atravessada pela alteridade. Mas o outro enquanto diferença é ao mesmo
tempo espaço de fascínio — quem não gosta de viajar para conhecer outros
povos, outras culturas? — e de perigo — o outro é o desconhecido
perante o qual é preciso prevenir-se.
Viveremos cada vez mais em sociedades multiculturais e multi-religiosas.
Aí está a riqueza da diferença, mas, simultaneamente, o sobressalto
dessa mesma diferença. Isto impõe o conhecimento mútuo, o diálogo
intercultural e inter-religioso. É cada vez mais claro, como há muito
repete o teólogo Hans Küng: não haverá paz entre as nações sem paz entre
as religiões; não haverá paz entre as religiões sem o seu conhecimento e
o diálogo entre elas; urge um consenso ético mínimo global.
2. A liberdade de expressão é um direito fundamental e uma conquista
civilizacional a que se não pode renunciar. Também no domínio religioso:
estou, por exemplo, convencido de que, se a liberdade de pensamento e
de expressão na Igreja Católica não estivesse tão tolhida, ela, Igreja,
não teria tido os problemas e até infâmias por que tem passado.
Face à crítica da religião, até com cartoons satíricos, patetas e
boçais, não fico aflito. Já Kant escreveu que a religião, apesar da sua
majestade, não está imune à crítica. Distingo muito bem entre o Sagrado,
Deus em si mesmo, que nós nunca atingimos — os cartoonistas também não —
e as nossas formas humanas de nos relacionarmos com Ele. Ora, muitas
vezes, essas formas são ridículas, inumanas, supersticiosas, e os
críticos obrigam-nos a ver isso e a corrigir.
Evidentemente, quem critica deve ter o sentido das suas
responsabilidades quanto ao que faz e às suas consequências. Há críticas
patetas e boçais: elas ficam com os seus autores.
Por outro lado, quem se sente ofendido ou injuriado, ferido nos seus
direitos, tem o direito à defesa segundo a lei: protestando, organizando
manifestações, recorrendo aos tribunais. Não se pode é recorrer à
violência, ao terror que mata. Frente a um deus que legitimasse a
violência bruta, a degola, a violação, a decapitação, só haveria uma
atitude humanamente digna: ser ateu. Um deus assim seria pior do que
nós, quando estamos de bem com a razão e a humanidade.
3. É sabido que também há fundamentalismo entre os cristãos, como
lembrou o Papa Francisco, e também os cristãos cometeram barbaridades
sem conta. De qualquer modo, aprenderam, também a partir dos
ensinamentos de Jesus, que é necessário ler criticamente os textos
sagrados, separar a religião e a política, criar Estados laicos, que
garantam a liberdade religiosa de todos, incluindo a dos ateus, e
resolver os diferendos e castigar os crimes, seguindo leis votadas em
Parlamentos pluralistas e democráticos.
4. Não creio que haja guerras e violência exclusivamente religiosas.
Aí, a religião servirá sobretudo para legitimar interesses outros:
políticos, económicos, geoestratégicos. Penso, por exemplo, que há
velhos ressentimentos do mundo muçulmano contra o Ocidente. Lá estão a
colonização, as cruzadas, a questão da Palestina, a invasão do Iraque e o
bombardeamento da Líbia e o caos que se seguiu, a falta de integração
daqueles e daquelas que vivem nos arrabaldes das cidades europeias. Isso
não justifica de modo nenhum o terror em nome de Deus, e impõe-se, por
exemplo, combater, também pela força das armas, o autoproclamado Estado
Islâmico, no quadro, evidentemente, do Direito Internacional. Mas dá que
pensar e obriga a agir.
5. Como dá que pensar que milhares de jovens europeus sejam aliciados
pelo jihadismo para combater nas fileiras do Estado Islâmico. O que é
que os move? Não será também porque, face ao vazio de valores, no quadro
de um consumismo pedante e do tédio gerado pelo hedonismo fácil, não
encontrando sentido, procuram uma grande causa, embora louca? Perante o
nada de valores de uma Europa descrente de si, decapitada pelo
materialismo, buscam no califado a senda da heroicidade e da salvação?
6. Quando vou a Viseu, passo pelo monumento ao bispo D. António Alves
Martins, meditando na sua afirmação sob a estátua: "A religião deve ser
como o sal na comida; nem muito nem pouco; só o preciso." Por outras
palavras, quanto à religião, nem de menos nem de mais. Estou convencido
de que, sem religião, isto é, sem a religação ao Mistério último, a vida
humana é mais pobre, acanhada, sem horizonte de transcendência e
sentido último. Mas espreita sempre o perigo do fanatismo, que pode
espalhar a pequenez, a humilhação e até a morte e o horror. O fanatismo,
desembocando no terrorismo, é o pior inimigo da religião na sua
verdade.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 17 de Janeiro de 2015
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
O TEMPO DA FALTA DE TEMPO*
Como é que ganhamos cada vez mais tempo e todos se queixam de terem cada
vez menos tempo? Recentemente, a revista DerSpiegel dedicou um
interessante estudo precisamente a este paradoxo, e é nele que me
inspiro.
Claro que nos tempos que correm se poupa imenso tempo. Por exemplo,
desde o século XIX, foram tiradas, em média, duas horas ao tempo do
sono. Dada a velocidade crescente dos meios de transporte, deslocamo-nos
mais rapidamente. Poupa-se tempo na criação de animais. Poupa-se tempo
na aprendizagem. Também na comida, que já se compra feita, e nos
encontros, que se dão cada vez mais através das novas tecnologias, e,
mesmo aí, por abreviaturas na escrita (por exemplo, K (que), PF (por
favor). Espantosa a diminuição do tempo de trabalho: o que são as
actuais 35 ou 40 horas teoricamente dedicadas ao trabalho por semana
comparadas com as 57 a mourejar, há cem anos, e 82, em 1825? Até para a
morte já se pensa, para poupar tempo, em serviços de funeral a
acompanhar pela internet.
No entanto, há sempre imensas coisas que ficam e que estão aí ainda para
fazer, e é preciso apressar-se cada vez mais. Mais rápido! Mais
depressa! E é levantar à pressa, ver e enviar e-mails ainda antes do
pequeno-almoço, acordar os filhos e prepará-los para a escola,
pequeno-almoço, mais e-mails, telefonemas enquanto se conduz, no
gabinete, imediatamente para a net, ler a imprensa, trabalho, almoço em
pé, estar permanentemente acessível pelo telemóvel e, de tarde, a mesma
coisa, regressar a casa, televisão e as notícias, deitar, esgotados... E
cada vez menos tempo para si e para a família. E as pessoas a
queixarem-se: segundo o Instituto Forsa, 59% dos alemães apresentaram,
entre os propósitos para 2013, "evitar e baixar o stress"; metade dos
entrevistados desejava "mais tempo" para os amigos e a família. De
facto, o stress parece ser "a situação constante".
O que é que se passou? Será que o progresso científico facilitou
realmente o dia-a-dia? O sociólogo Hartmut Rosa tem as suas dúvidas e,
para não citar o imenso tempo de espera nas filas de trânsito, dá o
exemplo da comunicação digital: claro que um e-mail é mais rápido do que
uma carta tradicional, mas "penso que entretanto você lê e escreve 40,
50 ou 70 e-mails por dia. Por isso, precisa de muito mais tempo para a
comunicação do que antes da internet". E é evidente que também se viaja
infinitamente mais e há muito mais ofertas e solicitações em tudo. De
qualquer modo, "temos uma ditadura da economia que se impôs em todos os
domínios da vida", escreve M. Liebmann, e, segundo K. Geissler, "o Homem
permite-se cada vez menos pausas. Assim, a privação de pausas é uma
forma de tortura." Outro motivo para a pressa e a aceleração
encontrar-se-ia, segundo Rosa, na secularização da sociedade ocidental.
Uma vez que cada vez menos se acredita na vida para lá da morte, já não
faz sentido fazer melhor na outra vida, a vida eterna; então, o homem
moderno pensa que tem de fazer tudo o que quer em 70, 80, 90 anos,
tornando-se a aceleração o "substituto da eternidade".
Antes, talvez as coisas fossem mais agradáveis. Hoje, é preciso andar
sempre mais depressa, de tal modo que já não se consegue ter algum
sossego. Veja-se estas duas experiências. Cientistas da Universidade da
Virgínia levaram pessoas de todas as idades para um espaço agradável e
pediram que ficassem durante cinco a 15 minutos sentadas e entretidas
com os seus pensamentos; a maioria reagiu com sinais visíveis de
mal-estar. Noutra investigação, havia a possibilidade de durante os 15
minutos de tranquilidade darem a si mesmas um pequeno choque eléctrico.
Resultado: dois terços dos homens e um quarto das mulheres preferiram
dar a si mesmos pelo menos uma vez um choque a ficar simplesmente
sentados e quietos. Um homem deu a si próprio 190 choques.
Neste contexto, cai-se no perigo, como preveniu o famoso bispo do Porto,
D. António Ferreira Gomes, da "agitação paralisante e da paralisia
agitante". E quando é que se pensa e se vai ao essencial em todos os
domínios? Perdido o ócio, só resta a sua negação, isto é, o negócio.
Quantos se recordam de que a palavra escola vem do grego scholê, que
significa precisamente ócio? Não o ócio da preguiça, mas o ócio da
liberdade, para pensar, que, por sua vez, vem de pensar e, pesar razões
para as boas e grandes decisões, também na política. "A política precisa
de mais momentos de desaceleração e de reflexão para debruçar-se sobre
decisões fundamentais", disse Andreas Vosskuhle, presidente do Tribunal
Constitucional da Alemanha. E o antigo vice-chanceler Franz Müntefering:
"Quando um Parlamento já não tiver tempo para discutir, consultar,
reflectir e então decidir, vencerão os sistemas autocráticos, que não
respeitam ninguém."
Mais uma vez, o sociólogo e filósofo Hartmut Rosa: "A questão não é que
velocidade atingimos, mas em que medida ela é boa para uma vida boa."
Afinal, quando vivemos de verdade?
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 10 de Janeiro de 2015
terça-feira, 6 de janeiro de 2015
O TEMPO DO ESSENCIAL*
1. Já Santo Agostinho se queixava: "Se ninguém me perguntar o que é o tempo, eu sei o que é, mas, se me perguntarem e eu quiser explicar, já não sei.” O tempo é um enigma. Se soubéssemos o que é, talvez tivéssemos resposta para a pergunta pelo que somos. Mas realmente, o passado já não é, o futuro ainda não é. E o presente? Quando queremos captá-lo, verdadeiramente ainda não é ou já não é, porque o presente passa, não dura. No entanto, é no presente que vivemos e somos. Só? Não. Porque somos a partir do que fomos, do passado, e na expectativa do futuro, de projectos. Há por vezes a ideia de que o tempo é uma espécie de corredor que se vai percorrendo. Mas não. O tempo é o modo como o ser finito, concretamente o ser humano, se vai realizando.
Qual é então a dimensão mais importante do tempo? Diríamos que é o passado, pois ninguém no-lo pode tirar: ninguém pode anular o ter sido. Dir-se-á que é o futuro, porque ainda não somos o que havemos de ser e é animados pela esperança que vivemos. Mas, afinal, é sempre no presente que vamos sendo. Temos, porém, dificuldade em viver no presente, como já Pascal se lamentava: "Nunca nos agarramos ao tempo presente", preocupados com o futuro ou dispersos com lembranças do passado; embora só o presente nos pertença verdadeiramente, "andamos erráticos por tempos que não são os nossos", passando o tempo na dispersão, o famoso divertissement pascaliano.
2. M. Lequin fez uma síntese da concepção do tempo em sete pensadores. E lá está Platão, para quem o tempo é uma "imagem móvel da eternidade"; embora o nosso mundo tenha sido feito à imagem de um modelo eterno, o tempo apenas imita a eternidade, num mundo submetido ao devir, onde se nasce e morre. Pascal, no contexto do que ficou dito, sublinha que viver verdadeiramente é esforçar-se por viver no presente, em vez de "delapidar a vida em expectativas ou lamentações". Segundo Kant, o tempo não existe em si mesmo nem nas coisas: o espaço e o tempo são condições formais da sensibilidade, sem as quais não podemos captar os objectos da experiência sensível, os fenómenos. Para Bergson, o tempo é essencialmente "duração", duração viva, vivemo-lo à maneira das "notas de um melodia", formando um tecido. Para Einstein, segundo a teoria da relatividade restrita, não existindo um tempo idêntico para todos os observadores, cada um tem o seu "tempo próprio". Hartmut Rosa chama a atenção para o paradoxo de termos cada vez menos tempo, quando, pela aceleração e inovação técnica, ganhamos cada vez mais tempo. Afinal, fazemos a experiência do tempo, sobretudo porque envelhecemos e morremos e, por isso, Heidegger sublinhou que é a partir da morte que pensamos o tempo: antecipando esse futuro para o qual somos projectados - característica essencial da existência humana é "o ser-para-a-morte" -, há para nós um passado e um presente. Passado, presente e futuro são os três modos do tempo de que a existência é indissociável e é neles que devemos tentar ser nós mesmos, em existência autêntica.
3. Há múltiplas experiências do tempo: uma coisa é o tempo quantitativo, mensurável; outra coisa é o tempo da criação, da beleza, da música, das decisões fundamentais, do amor. Por isso, em grego há duas palavras distintas para o tempo: Chronos, que devora os seus próprios filhos, e kairós, o tempo oportuno, favorável, do amor, da decisão.
Do pior do nosso tempo é a banalidade rasante, o presentismo consumista e saltitante de um momento para outro momento, na dispersão de que falava Pascal, sem consistência nem projecto. O que daí resulta é o vazio e o tédio, na voragem de um tempo hedonista. Por isso, no início de um novo ano, talvez não fosse mau parar um pouco para pensar, meditar e ir ao essencial. Afinal, o tempo é o tempo de nos fazermos, no quadro de um projecto decente e digno. O que queremos fazer de nós, uns com os outros?
4. Deixo aí, nas palavras do filósofo F. Lenoir, esta bela história, apelando ao essencial: "Um sábio tomou a palavra e disse: Escutai a história desta mulher que tem um filho nos braços. Ao passar diante de uma gruta, ouve uma voz misteriosa que lhe diz: 'Entra e apanha tudo o que quiseres. Mas lembra-te de uma coisa: depois de saíres, uma porta fechar-se-á para sempre. Aproveita a oportunidade, mas não esqueças o mais importante.' A mulher entra na gruta e descobre um fabuloso tesouro. Fascinada pelo ouro, os diamantes e as pérolas, coloca o filho no chão e apodera-se de tudo quanto pode. Sonha com o que vai poder fazer com todas estas riquezas. A voz misteriosa diz-lhe: 'Passou o tempo, não esqueças o mais importante.' Ao ouvir a voz, a mulher, carregada de ouro e pedras preciosas, corre para fora da gruta cuja porta se fecha para todo o sempre. Ela encanta-se com o seu tesouro. E só então se lembra do filho que esqueceu no interior da gruta."
5. Um 2015 abençoado, feliz, pleno de realizações boas e felicitantes!
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 3 de Janeiro de 2015
terça-feira, 30 de dezembro de 2014
Catálogo das doenças da Cúria*
Estou convencido de que nunca pensaram ter de ouvir o que ouviram. Estavam os cardeais, bispos, monsenhores na bela Sala Clementina, para a saudação natalícia papal. A Cúria — governo e administração central da Igreja — esperaria palavras diplomáticas, alusivas à data. Mas o Papa Francisco veio com o Evangelho, num discurso profético e arrasador.
A. Como seria belo, começou, "pensar que a Cúria romana é um pequeno modelo da Igreja". No entanto, "como todo o corpo humano, está exposta à doença, ao mau funcionamento". E enumerou, em tom duro, algumas destas doenças da Cúria.
1. Tudo gira à volta da "patologia do poder". Assim, a primeira doença é a de "sentir-se imortal, indispensável", que leva ao narcisismo e a considerar-se superior a todos e não ao serviço de todos. Por isso, aconselhou uma cura de humildade: passar por um cemitério e ver os nomes de tantos que também pensaram que eram imortais e indispensáveis. "Uma Cúria que não se autocrítica, que não procura melhorar é um corpo doente". 2. Outra doença é o "martismo". No Evangelho, há duas irmãs: Marta e Maria e, enquanto esta escuta Jesus, Marta corre e atarefa-se sem descanso. O martismo é, pois, o trabalho excessivo, no stress, na agitação, sem repouso para a meditação e interioridade. 3. Há também a "fossilização mental e espiritual", que leva à perda da sensibilidade necessária para chorar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram. 4. Lá está ainda a doença do excesso de planificação e do funcionalismo, que conduz a posicionamentos estáticos e imutáveis, com a pretensão de domesticar o Espírito. 5. A doença da má coordenação, perdendo o espírito de colaboração e equipa. 6. A doença do "Alzheimer espiritual": perdeu-se a memória do encontro com Jesus e com Deus e vive-se então na dependência de concepções imaginárias, das próprias paixões, caprichos e manias. 7. Lá estão "a rivalidade e a vanglória", transformando-se a aparência, as honras e as medalhas honoríficas no primeiro objectivo da vida. 8. A doença da "esquizofrenia existencial", que é a de "quem vive uma vida dupla, fruto da hipocrisia típica do medíocre e do vazio espiritual que títulos académicos não podem preencher". Doença que afecta sobretudo quem se limita às coisas burocráticas e perde o contacto pastoral. 9. A doença dos "rumores, mexericos, murmurações, má-língua", que pode levar ao "homicídio a sangue frio". Cuidado com "o terrorismo dos rumores, do diz-se!". 10. A doença de "divinizar os chefes", própria de quem idolatra os superiores: "são vítimas do carreirismo e do oportunismo". 11. A doença da indiferença para com os outros. 12. A "doença da cara de funeral": são pessoas" bruscas e grosseiras", sem alegria nem delicadeza. 13. A doença da acumulação de bens materiais, querendo assim preencher "um vazio existencial no coração". 14. A doença dos "círculos fechados", com o perigo de cortar a relação com o Corpo da Igreja e até com o próprio Cristo. 15. A última é "a doença do mundanismo, do exibicionismo", transformando o serviço em poder.
B. É claro que "estas doenças e tentações são naturalmente um perigo para cada cristão e para cada cúria (diocesana), comunidade, paróquia, movimento eclesial, e podem ferir tanto a nível individual como comunitário", concluiu. Aliás, podemos acrescentar que as tentações de sentimento de imortalidade, Alzheimer espiritual, esquizofrenia existencial, exibicionismo, materialismo, vaidade, nepotismo, martismo... são tentações de governantes e cidadãos em geral, em toda a parte. Mas, aqui, sem adoçar as palavras, Francisco dirigiu-se directamente à Cúria romana, que não quer como corte e que não reagiu entusiasta ao discurso, apenas com palmas tímidas e frouxas. Possivelmente, a Cúria ao longo dos tempos terá feito mais ateus e provocado mais abandonos da Igreja do que Marx, Nietzsche, Freud e outros pensadores ateus juntos.
Recentemente, o historiador da Igreja, Andrea Riccardi, fundador da célebre Comunidade de Santo Egídio, ex-ministro da Itália e amigo de Francisco, advertiu que "o Papa tem muita oposição dentro e fora da Cúria, e sabe-o". Francisco está a operar uma revolução na Igreja e tem consciência de que há maquinações no sentido de um restauracionismo pré-conciliar. Mas também sabe, como acrescentou Riccardi, que, sem o Concílio Vaticano II, "a Igreja teria naufragado e seria uma pequena comunidade com um grande passado". "A Igreja errou ao apresentar-se como o partido dos valores tradicionais", e "aceitar o desafio de ser Igreja-povo é crucial". Francisco é consciente de que, sem reformas estruturais na Igreja, corre o risco de, desaparecendo ele, o seu pontificado vir a ser considerado como um simples parêntesis. Por isso, invocou a urgência de conversão da Cúria. Fê-lo, à luz do Evangelho, frente à Cúria e sabendo que a maior parte da Igreja e da opinião pública mundial está do seu lado.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 27 de Dezembro de 2014
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
Herança cristã da Europa*
No contexto dos debates à volta da entrada ou não da Turquia na União Europeia, o escritor turco Orhan Pamuk, Nobel da Literatura de 2006, fez, na sua recente visita a Lisboa, algumas considerações sobre os valores fundamentais da Europa, que merecem atenção. Foi dizendo que a herança cultural europeia não se deve limitar à preservação dos seus monumentos, pois não pode esquecer "a preservação dos seus valores fundamentais", acrescentando que "temos de ter uma discussão séria sobre esses valores".
Pamuk não concretizou muito quanto a estes valores. Assim, talvez se deva ter em atenção o que disse, há um ano, a um jornalista colombiano, que lhe perguntou se se sentia europeu: "Não sei. Não penso nesses termos. Em primeiro lugar, sinto-me turco. E um turco tanto se sente europeu como não europeu. Acredito numa Europa que não se baseia no cristianismo, mas no Renascimento, na Modernidade, na 'Liberdade, Igualdade, Fraternidade'. Essa é a minha Europa. Acredito nessas coisas e quero fazer parte delas. Mas, se a Europa é a civilização cristã, lamento: nós, turcos, não queremos entrar."
Precisamente aqui é que está a razão por que chamo a atenção para estas declarações. De facto, a pergunta é: tudo aquilo que Pamuk quer, e bem - Renascimento, Modernidade, Liberdade, Igualdade, Fraternidade -, são pensáveis, sem terem na sua base precisamente o cristianismo?
Vou citar uma série de grandes e reputados pensadores que mostram que não, e trata-se de pensadores que são agnósticos ou ateus. Por exemplo, o historiador Antonio Piñero dizia recentemente, depois de declarar que Jesus afirmou a igualdade teológica de todas as pessoas enquanto filhas de Deus: "Esperava-se que mais tarde chegasse a igualdade social. Se compararmos o cristianismo com todas as outras religiões do mundo, vemos que essa igualdade substancial de todos os homens é o que tornou possível que com o tempo se chegasse ao Renascimento, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e aos direitos humanos. Isto quer dizer: o Evangelho guarda, em potência, a semente dessa igualdade, que não podia ser realidade na sociedade do século I. O cristianismo está por trás, à maneira de fermento, de todos os movimentos igualitários e feministas que houve na história, embora agora o não vejamos claramente, porque o cristianismo evoluiu para humanismo. Mas esse humanismo não se vê em religiões que não sejam cristãs. Ou porventura o budismo, por si, chegou ao Iluminismo? O xintoísmo? O islão? Os poucos movimentos feministas que há nessas religiões estão inspirados na cultura ocidental. E a cultura ocidental tem como sustento a cultura cristã. Embora se trate de uma cultura cristã descrida, desclericalizada e agnóstica, culturalmente cristã."
Houve erros e tragédias, guerras, colonialismo, Cruzadas, Inquisição, no contexto do cristianismo histórico? Ninguém o pode negar. Mas é também inegável a sua influência positiva no melhor dos últimos dois milénios da história da humanidade, incluindo a actualidade. Por isso, o filósofo ateu convicto e combatente, Michel Onfray, escreve no seu Tratado de Ateologia: 'A carne ocidental é cristã. Incluindo a dos ateus, muçulmanos, deístas e agnósticos educados, criados ou instruídos na zona geográfica e ideológica judeo-cristã." O filósofo André Comte-Sponville também escreve: "Sou ateu, uma vez que não creio em nenhum deus, mas fiel, porque me reconheço como parte de determinada tradição, de determinada história e dos seus valores judeo-cristãos (ou greco-cristãos), que são os nossos."
Na sua recente obra, Sagesses d'hier et d'aujourd'hui (Sabedorias de ontem e de hoje), na qual traça a história essencial das sabedorias e filosofias ao longo dos tempos, o filósofo Luc Ferry, que foi ministro da Educação de França, dedica um grande capítulo a "Jesus e a revolução judeo-cristã". Aí se lê, logo à entrada: "Entre os séculos V e XVII, o Ocidente foi essencialmente cristão, cultural e filosoficamente cristão, de tal modo que a filosofia moderna, mesmo quando foi crítica das religiões e até resolutamente ateia, não esteve menos marcada de modo decisivo por esta herança religiosa." E dá o exemplo do idealismo alemão, acrescentando: "Assim, mesmo para os que não são crentes, o fundo de cultura judeo-cristã é omnipresente, de tal modo que é sempre indispensável interessar-se por ela e captar os seus principais traços, em ordem a compreendermo-nos a nós mesmos e compreender o mundo no qual vivemos." E, depois de apresentar características essenciais do cristianismo, raízes e herança da Europa democrática e dos direitos humanos, conclui: "Mesmo quando se é radicalmente não-crente, está-se evidentemente impregnado por esta cultura cristã que dominou a história do Ocidente, mas que não se reduziu a ele."
No Natal, o que está em festa essencial é a infinita dignidade humana, que veio ao mundo em Jesus Cristo. Boas-Festas!
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 20 de Dezembro de 2014
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
A DIGNIDADE DE SER ATEU*
A liberdade religiosa é um direito humano fundamental. Poder-se-ia mesmo dizer que é o direito mais fundamental, na base de todos os outros direitos, na medida em que, estando referido ao infinito-liberdade de acreditar em Deus ou não, seguir esta religião ou aquela ou nenhuma, mudar de religião -, mostra a transcendente dignidade humana no confronto com o infinito.
Nem sempre houve esta compreensão, também entre os cristãos e nomeadamente na Igreja Católica. Quando se olha para a história, encontramos, neste domínio, um estendal de miséria e vergonha. Houve guerras religiosas, Inquisição, assassínios, prisões, conversões sob ameaça de morte, tudo por causa de interesses de domínio: religioso, político, económico, geoestratégico.
Felizmente, há hoje no Ocidente a afirmação clara do direito à liberdade religiosa, garantida por Estados não confessionais, dentro da separação do Estado e das Igrejas. E hoje, de facto, o cristianismo é, de longe, a religião mais perseguida no mundo. Veja-se o volumoso "Livro negro da condição dos cristãos no mundo", recentemente publicado.
Desgraçadamente, o Relatório 2014 da Ajuda à Igreja que Sofre sobre as violações da liberdade religiosa no mundo é tudo menos animador. Entre os vinte países com a mais alta taxa de intolerância religiosa, há doze que pioraram no último ano: Iraque, Líbia, Nigéria, Paquistão, Síria, Sudão, Azerbaijão, China, Egipto, República Centro-Africana, Usbequistão, Myanmar, e quinze têm um regime de governo muçulmano, a que se deve juntar a Nigéria, religiosamente dividida entre cristãos e muçulmanos e o autoproclamado Estado Islâmico. Há um cuja religião preponderante é o budismo: Myanmar.
Também no Sri Lanka, que o Papa Francisco visitará em Janeiro próximo, onde o budismo domina, há intolerância, embora em menor medida. Associa-se ao budismo a ideia de paz, tolerância, sabedoria, compaixão, e pensa-se no Dalai Lama. Isto é verdade, mas é igualmente verdade que a liberdade religiosa está fortemente reprimida não só nestes dois países mas também noutros, embora em grau menos elevado, onde o budismo é dominante: Laos, Camboja, Butão, Mongólia.
Como já foi dito, também o Relatório considera que, em vários casos, os motivos para a repressão são sobretudo políticos, étnicos e culturais. Mas não se poderá negar a afirmação de um credo religioso contra os outros, como acontece de modo absolutamente claro no Estado Islâmico. Neste caso, a natureza religiosa da guerra brutal contra os "infiéis" é afirmada pela revista La Civiltà Cattolica: "A sua é uma guerra de religião e de aniquilamento. Instrumentaliza o poder da religião e não vice -versa." Não só os cristãos, os iazidis e judeus mas também outros irmãos muçulmanos, xiitas e alauítas, etc. são considerados "apóstatas", "porque não têm como meta o califado mundial, mas, quando muito, Estados nacionais governados pela sharia". Esta brutalidade chegou à África, com o grupo Boko Haram.
Evidentemente, face a um deus que legitimasse a crueldade cega e bruta, arrepiante, do Estado Islâmico, e a violência e o terrorismo em seu nome, só haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu.
Já aqui escrevi sobre o KAICIID, sigla em inglês do Centro Internacional King Ab-dullah bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural. A sua sede é Viena, os fundadores, a Áustria, a Espanha e a Arábia Saudita, tendo o Vaticano como observador fundador e apoiante da iniciativa impulsionada pelo monarca saudita, que dá o nome à instituição. Em 19 de Novembro passado, da sua reunião resultou a Declaração United Against Violence in the Name of Religion, condenando, portanto, a violência em nome da religião. De louvar, claro, mas não se pode deixar de referir que a Arábia Saudita proíbe a prática de religiões não muçulmanas.
De regresso da sua visita à Turquia, também em Novembro, o Papa Francisco declarou, numa conferência de imprensa no avião, que "não se pode dizer que todos os muçulmanos são terroristas" e que "nós também temos cristãos fundamentalistas, eh?!" Mas pediu insistentemente aos líderes muçulmanos "uma condenação mundial" do terrorismo islâmico: "Seria bom que todos os líderes muçulmanos, políticos, religiosos, digam claramente que condenam isso, pois ajudaria a maioria do povo muçulmano. Todos necessitamos de uma condenação mundial." Se há islamofobia, também há cristianofobia: "Perseguem os cristãos no Médio Oriente como se quisessem que nada restasse de cristão."
Penso que, para a liberdade religiosa, há duas condições essenciais. Uma tem que ver com a leitura histórico-crítica dos textos sagrados. A outra exige a separação do Estado e da Igreja, da religião e da política. Sem um Estado confessionalmente neutro, laico, que garanta a liberdade religiosa de todos, continuará a capitis diminutio (perda de direitos) dos cidadãos que não sigam a religião oficial do Estado.
*Transcrição do DN da crónica de Anselmo Borges, publicada neste jornal no sábado passado, dia 13 de Dezembro de 2014
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