Eu fui o mestre dos Padres de
Paus, fui o que lhes ensinei cantochão, e também fui o seu mestre de cerimónias
e ainda de Moral…
Todos os anos, na véspera de
Natal, visito no Fornelo, onde vivo, uns cinco ou seis pobres, que aqui há, e a
cada um dou uma quarta de bacalhau, e na Feira Nova, em casa da Brasileira onde
vou comer depois da minha missa, espalho pelos pobres umas três ou quatro
moedas de cinco réis. Assim, numa parte com seis quartas de bacalhau e na
outra com três ou quatro moedas de cinco réis, sou chamado honrado e caritativo. Ah! Que demência
se apoderou de ti!! Tu não vês que eu sou um murmurador, um caluniador, de
vivos e mortos, um intriguista, um invejoso, cujas qualidades se não compadecem
com a caridade?
Ah! Que só tendes habilidade para
despejar copos e nenhuma para conhecer os homens!!
Eu tenho tentos defeitos e tais
que, se as autoridades eclesiásticas tivessem deles conhecimento, já tinha sido
suspenso, deposto e degradado!! Tenho pecados tais que a Igreja nunca há-de rezar
por mim. Na minha terceira confissão, que hei-de fazer, vós vereis então quem
tem sido este impostor, que só para o mal tem talento!!
Ai de mim!...Tenho sido um cavalo
sem freio no precipício!!
Perdoai-me, meu Deus. A religião,
que com o vosso sangue plantastes no mundo, lucraria muito se eu nunca fosse
Padre…
Perdoai-me por esse sangue que
derramastes em jorros pela terra…
Perdoai-me, eu vos peço, pelo
amor de Deus, ó meus irmãos, por mim tão
ofendidos…
Ó serrano, confesso que te roubei
e, com juramento falso que dei contra ti,
expulsei-te das veigas risonhas, dos amenos prados de Portugal para essa
inóspita e insalubre região de África. Perdoa-me.
Infelizes serranas, que por minha causa sofreis tão tormentoso exílio
na vossa idade vigorosa e florescente, perdoai-me, e adeus até ao dia do juízo.
Nobres senhores da casa da
Soenga, que filhos de pais ilustres e recebendo deles a nobreza que tinham, a
pouco fostes arrastados pelos caminhos do opróbrio por mim, e por outros como
eu, perdoai-me também.
Jovens, que iludidos por mim
desertastes do exército sagrado de Jesus, moças que transviei do caminho da
honra e da virtude, perdoai-me.
Perdoai-me também mortos, ó
mortos; esquecido de que um finado tem tanto jus à sua boa fama como o vivo,
tenho faltado à caridade para convosco. As murmurações e calúnias, que tenho dirigido a vossos veneráveis ossos,
são as missas de réquiem que tenho celebrado pelo vosso eterno descanso.
Perdoai-me.
Adeus, caros leitores até breve.
Salus integra, tranquilla pax, multum
auri, et longa vita sint vobis. Amen
Paus, 25 de Novembro de 1889
O Abade de Barrô
Pe. Eugénio César d’Azevedo
*Transcrição do manuscrito "O abbade de Barrô e sua segunda confissão", datado de 25 de Novembro de 1889, procedendo-se apenas à actualização gráfica e a pequenas alterações, designadamente sinais de pontuação.