Gosto de viver
Nasci a 18 de Julho de 1926. Ultimamente, neste dia, os meus filhos e vizinhos mandam fazer um bolo e cantam-me os parabéns. Ainda vou tendo força para apagar tanta vela. Todos se riem, mas eu também acho graça. Só é pena eu não gostar de doces. Quando fiz 80 anos, juntou-se muita gente. Tenho muitos amigos e todos me querem bem. Ando sempre com este telemóvel para as pessoas poderem falar comigo. Quando toca, carrego aqui neste botão e começo a conversa. Até de Espanha, a minha filha e netos me telefonam a saber se estou bem.
Rezo muito pelos que já partiram para que estejam em bom lugar, mas gosto muito de cá andar. Quando o meu Zeferino estava muito mal da doença, disse-me: “Adelaide, não te aflijas que eu ao cabo de meio ano mando-te chamar”. Realmente andei muito aflita durante seis meses, com medo que ele me mandasse uma carta de chamada. Pensei que Nosso Senhor lhe ia fazer a vontade. Nem dormia. Pensava para comigo todos os dias “será hoje que me vai dar uma coisa ruim e amanhã já não acordo?”. Aquelas palavras do meu Zeferino pareciam um cutelo em cima do meu pescoço. Quando passou o meio ano, foi um alívio. Afinal, ele não precisava lá em cima da minha companhia e governa-se bem sem mim. Nós aqui em baixo precisamos da companhia uns dos outros, mas as alminhas que fiquem descansadinhas lá em cima.
Sempre gostei de ir, logo de manhãzinha, quando o tempo está bom, até ao campo, lá abaixo da igreja. Vou devagarinho, mas faz-me bem. Demoro quase três quartos de hora a pé. Tiro as ervas, sacho ou deito a água. Claro que a cava da terra, as sementeiras, a poda e os serviços mais pesados ficam por conta do meu genro. Depois volto para casa. Faço o almoço e descanso qualquer coisa. Durante a tarde, converso com vizinhos, arrumo a casa e trato das pitas. A sua irmã e o seu cunhado estão sempre prontos a ajudar-me e fazem-me muita companhia, sobretudo no inverno. À noite, como uma refeição mais ligeira. Deito-me por volta das dez horas. E fico a rezar.
Ao sábado à noite e ao domingo, o meu filho Zé, que nos últimos meses é responsável por umas obras no norte de Espanha, vem comer comigo. Faz uma viagem tão longa para só para me ver.
Doença de bronquite
Tal como a minha mãe, sofro muito de bronquite. No inverno e sobretudo em dias de nevoeiro, falta-me muito o ar. É um mal-estar muito grande. Quero falar e não posso. Tenho aqui uma bombas de ar para quando me vejo aflita. No inverno, sou obrigada a bombar mais. Chego a dar quatro ou cinco bombadas por dia. Agora, no calor, quase que não é preciso bombar.
No inverno passado, vi-me muito atacada e tive de ir ao Centro de Saúde numa ambulância. O Sr. Doutor viu a coisa tão ruim que me mandou para o hospital de Penafiel. Estive lá vários dias internada. Fizeram-me lá muitos exames e davam-me muitos medicamentos. Às tantas não sabia a quantas andava, qual era o dia da semana. O que mais pedia às senhoras enfermeiras era ter alta para vir para a minha terrinha e estar na minha casinha. Mas elas diziam sempre “tem de ter paciência; daqui a uns dias”. Recebi lá muitas visitas. Mas se continuasse lá ficava pataroca. Aqui, fica-se logo a saber a quantas andamos.
Depois de vir do hospital, fui para casa da minha filha, a Céu. Vinha muito fraquinha. Agora, sinto-me bem. Passo as tardes na minha casa. Trato das pitas e falo com os meus vizinhos, mas à noite vou comer e ficar em casa da minha filha.
A servir como criada
Não cheguei a conhecer o meu pai; devia ter meio ano quando ele morreu. A minha mãe morreu com sessenta anos, já estava eu casada. Fui várias vezes com ela ao Sr. Doutor Albininho da Póvoa, quando ela estava mais aflita da bronquite. Depois dele a escutar, sentia-se mais aliviada.
Vivíamos numa casa arrendada nos Carvalhos. O meu pai sempre trabalhou no Douro o ano todo. Vinha cá de vez e quando. A minha mãe cuidava dos filhos e fazia umas hortitas por empréstimo. Éramos seis irmãos, três rapazes e três raparigas. Eu sou a única que está viva.
Nenhum de nós foi à escola. Íamos aonde? Não havia. A minha escola foi o trabalho desde pequena.
Tinha prá aí doze anos quando fui servir para casa da doceira de Pimeirol. A patroa fazia cavacas. Eu fazia a limpeza lá de casa e tratava da criação. O marido já tinha morrido e era caçador. Um dia, a patroa, para se rir comigo, meteu um cartuxo na arma e disse-me com voz grossa a imitar o marido: “ó Adelaide, ó Adelaide, pega lá a arma e dispara que há aqui ladrões”. Assim fiz, fui para uma varanda e carreguei no gatilho. Ó homem, a arma deu um coice danado e fugiu-se-me das mãos. A patroa muito se riu, mas eu fiquei muito atrapalhada, pois fumegava por todos os lados.
O destino a seguir foi ir servir para casa da D. Maria do Fornelo, mulher do Sr. Zezinho. A cozinheira era a Sra. Madalena da Talhada. Eu ajudava, fazia as camas e a limpeza.
Servi também na Casa dos Almeidas do Origo. Ainda me recordo do velho professor Almeida a passear para lá e para cá, depois da ceia, enquanto ia cantarolando “Pró céu, pró céu quero ir/Se pró céu queres ir/Não deves roubar nada/Se tiveres roubado/Tens de restituir”. Esta lenga-lenga era cantada sempre com um livro na mão.
Estive a trabalhar ainda em casa da D. Agostinha, em S. Martinho de Mouros. O marido e a mulher eram professores. A certa altura, decidiram ir viver e trabalhar para o Porto e queriam levar-me com eles. Mas eu não quis ir, pois já namorava aquele que viria a ser meu futuro marido. Mas foram boas pessoas, pois deram-me uma mala cheia de roupa.
Percurso após o casamento
Conheci o meu marido quando ele e um seu irmão trabalhavam no cemitério de Paus. Cruzei-me com ele, trabalhava eu em casa do Sr. Zé Domingues. Quando descia o povo para apanhar caldo, dava com eles. Às vezes, metiam-se comigo. Lembro-me do meu futuro cunhado dizer: “não me dá aí um caldinho?”. Mas o Zeferino ajuntou logo: “quem precisa mesmo de um caldinho sou eu”. Um dia, disse: “ó menina, posso dar-lhe uma palavrinha?”. E pediu-me namoro. A minha mãe não se importou. Ele era natural do Cimo de Resende e vinha namorar comigo todos os domingos. Namorámos um ano.
Casei com dezanove anos e o meu marido com vinte e três. O casamento foi na igreja de Paus. Houve um almoço melhorado de arroz e carne. A minha mãe trabalhava na altura prós fidalgos do Fornelo e foram eles que deram a carne, bastante gorda, por sinal.
Como uma tia minha era criada do velho Padre Joaquim, fomos morar para uma casinha ao lado da dele. O meu marido continuou a trabalhar como trolha e eu ia tratando de umas hortinhas.
Como as bocas para comer eram cada vez mais (tive cinco filhos, um deles infelizmente já faleceu), tive de fazer pela vida. Montei uma tenda. Aos domingos e nas festas, o meu marido acompanhava-me. Durante a semana, andava sozinha ou com o meu filho mais velho. Ia para a serra, percorria a Panchorra, a Gralheira, Campo Benfeito, Cutelo…Cá, em baixo, ia de terra em terra, Paus, Barrô, S. Martinho de Mouros, S. João de Fontoura…Batia todas as feiras e fazia todas as festas. Vendia gaitas, balões e brinquedos. Às vezes, quando estava sozinha, roubavam-me mais do que aquilo que vendia. Sabe como é. Quem me fornecia o material era uma casa da Régua. Trazia os artigos de comboio e saía em Porto de Rei. Depois trazia o cesto à cabeça por aí acima.
Mais tarde, entreguei-me de um moinho, pertencente ao Herculano da Póvoa. Moía o milho e os cereais de Moumiz, Quintãs, Lages, Formigal, Origo e outras povoações da freguesia. Tinha uma jerica para transportar as taleigas. Tirava 3kg por arroba quando o transporte era por nossa conta e 1,5Kg, quando iam lá levar os cereais e buscar a farinha. Era muito canseira, mas a gente tinha de se agarrar a qualquer coisa. Deixámos este negócio, porque houve problemas em fazer a escritura definitiva.
Entretanto, surgiu a oportunidade de comprar umas territas abaixo da igreja, junto ao rio Bestança. E começámos a trabalhá-las mais os filhos, já que o meu marido nunca deixou a arte de trolha, aproveitando todos os dias que apareciam, já que sempre davam mais qualquer coisa.
Morte do marido e esperança no futuro
Sem ninguém esperar, o meu marido começou a ter dificuldade em engolir. Fomos ao médico, que mandou fazer uns exames. E aconteceu o pior, pois acusaram uma doença ruim, um cancro na garganta. Ainda esteve internado nos hospitais de Coimbra, tendo vindo depois para Resende. Mas os médicos desenganaram-nos, dizendo que não havia nada a fazer e o melhor era vir morrer a casa, descansado, junto à família. Teve consciência de tudo quase até ao último minuto. Sofreu muito, pois custava-lhe muito comer e até beber. Morreu com sessenta anos. Ainda me chegou a dizer: “Adelaide, tu ficas muito nova”; eu sossegava-o: “está descansado que eu não quero mais homem nenhum”. E assim foi. Nunca me interessei por mais ninguém.
Para governar a vida, depois da morte do meu marido, tive de dar dias fora. Ainda cheguei a trabalhar bastante aqui com a nossa vizinha, a D. Amélia. E tive que arranjar dinheiro para pagar as quotas da Casa do Povo de S. Martinho.
Entretanto, os filhos casaram-se ou saíram de casa. Só ficou o Aurélio, que infelizmente morreu.
Com a reformazinha e as curiosidades que se tiram do campo, lá se vai vivendo. Muito melhor que antigamente. Tomaram os meus pais ter a vida que eu tenho. Haja saúde. Não preciso de medicamentos para dormir e isso é bom. Não gosto de ver televisão. Mas mesmo assim lá vou sabendo as notícias. Para saber misérias não vale a pena. Aquilo agora são só desastres, incêndios, terramotos e mortes. Prefiro ir sabendo o que se passa aqui na terra, que normalmente é sempre o mesmo. Nunca fui pessoa de sair muito de casa. Em solteira também não ia muito a bailes e faziam-se por aí alguns. Mas ainda sou pessoa de ir às festas da freguesia e ao festival do rancho. Olhe, há três anos o doutor dos Carvalhos convidou-me para subir ao palco e dançar e lá fui.
Antigamente, punha-se tudo em pratos limpos nas vessadas. Era tudo cantado à desgarrada: namoros, desavenças, amizades com os padres…Não se nomeava ninguém, mas todos entendiam. Às vezes, as vessadas do outro lado respondiam. Era uma animação, mas era um canseira muito grande. Isto servia para abafar a fome.
Era tudo muito lindo, mas era trabalhar até morrer. Não eram precisos lares da terceira idade, que poucas pessoas chegavam a velhinhas. Só os tolos desejam voltar ao antigamente.
Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
Nasci a 18 de Julho de 1926. Ultimamente, neste dia, os meus filhos e vizinhos mandam fazer um bolo e cantam-me os parabéns. Ainda vou tendo força para apagar tanta vela. Todos se riem, mas eu também acho graça. Só é pena eu não gostar de doces. Quando fiz 80 anos, juntou-se muita gente. Tenho muitos amigos e todos me querem bem. Ando sempre com este telemóvel para as pessoas poderem falar comigo. Quando toca, carrego aqui neste botão e começo a conversa. Até de Espanha, a minha filha e netos me telefonam a saber se estou bem.
Rezo muito pelos que já partiram para que estejam em bom lugar, mas gosto muito de cá andar. Quando o meu Zeferino estava muito mal da doença, disse-me: “Adelaide, não te aflijas que eu ao cabo de meio ano mando-te chamar”. Realmente andei muito aflita durante seis meses, com medo que ele me mandasse uma carta de chamada. Pensei que Nosso Senhor lhe ia fazer a vontade. Nem dormia. Pensava para comigo todos os dias “será hoje que me vai dar uma coisa ruim e amanhã já não acordo?”. Aquelas palavras do meu Zeferino pareciam um cutelo em cima do meu pescoço. Quando passou o meio ano, foi um alívio. Afinal, ele não precisava lá em cima da minha companhia e governa-se bem sem mim. Nós aqui em baixo precisamos da companhia uns dos outros, mas as alminhas que fiquem descansadinhas lá em cima.
Sempre gostei de ir, logo de manhãzinha, quando o tempo está bom, até ao campo, lá abaixo da igreja. Vou devagarinho, mas faz-me bem. Demoro quase três quartos de hora a pé. Tiro as ervas, sacho ou deito a água. Claro que a cava da terra, as sementeiras, a poda e os serviços mais pesados ficam por conta do meu genro. Depois volto para casa. Faço o almoço e descanso qualquer coisa. Durante a tarde, converso com vizinhos, arrumo a casa e trato das pitas. A sua irmã e o seu cunhado estão sempre prontos a ajudar-me e fazem-me muita companhia, sobretudo no inverno. À noite, como uma refeição mais ligeira. Deito-me por volta das dez horas. E fico a rezar.
Ao sábado à noite e ao domingo, o meu filho Zé, que nos últimos meses é responsável por umas obras no norte de Espanha, vem comer comigo. Faz uma viagem tão longa para só para me ver.
Doença de bronquite
Tal como a minha mãe, sofro muito de bronquite. No inverno e sobretudo em dias de nevoeiro, falta-me muito o ar. É um mal-estar muito grande. Quero falar e não posso. Tenho aqui uma bombas de ar para quando me vejo aflita. No inverno, sou obrigada a bombar mais. Chego a dar quatro ou cinco bombadas por dia. Agora, no calor, quase que não é preciso bombar.
No inverno passado, vi-me muito atacada e tive de ir ao Centro de Saúde numa ambulância. O Sr. Doutor viu a coisa tão ruim que me mandou para o hospital de Penafiel. Estive lá vários dias internada. Fizeram-me lá muitos exames e davam-me muitos medicamentos. Às tantas não sabia a quantas andava, qual era o dia da semana. O que mais pedia às senhoras enfermeiras era ter alta para vir para a minha terrinha e estar na minha casinha. Mas elas diziam sempre “tem de ter paciência; daqui a uns dias”. Recebi lá muitas visitas. Mas se continuasse lá ficava pataroca. Aqui, fica-se logo a saber a quantas andamos.
Depois de vir do hospital, fui para casa da minha filha, a Céu. Vinha muito fraquinha. Agora, sinto-me bem. Passo as tardes na minha casa. Trato das pitas e falo com os meus vizinhos, mas à noite vou comer e ficar em casa da minha filha.
A servir como criada
Não cheguei a conhecer o meu pai; devia ter meio ano quando ele morreu. A minha mãe morreu com sessenta anos, já estava eu casada. Fui várias vezes com ela ao Sr. Doutor Albininho da Póvoa, quando ela estava mais aflita da bronquite. Depois dele a escutar, sentia-se mais aliviada.
Vivíamos numa casa arrendada nos Carvalhos. O meu pai sempre trabalhou no Douro o ano todo. Vinha cá de vez e quando. A minha mãe cuidava dos filhos e fazia umas hortitas por empréstimo. Éramos seis irmãos, três rapazes e três raparigas. Eu sou a única que está viva.
Nenhum de nós foi à escola. Íamos aonde? Não havia. A minha escola foi o trabalho desde pequena.
Tinha prá aí doze anos quando fui servir para casa da doceira de Pimeirol. A patroa fazia cavacas. Eu fazia a limpeza lá de casa e tratava da criação. O marido já tinha morrido e era caçador. Um dia, a patroa, para se rir comigo, meteu um cartuxo na arma e disse-me com voz grossa a imitar o marido: “ó Adelaide, ó Adelaide, pega lá a arma e dispara que há aqui ladrões”. Assim fiz, fui para uma varanda e carreguei no gatilho. Ó homem, a arma deu um coice danado e fugiu-se-me das mãos. A patroa muito se riu, mas eu fiquei muito atrapalhada, pois fumegava por todos os lados.
O destino a seguir foi ir servir para casa da D. Maria do Fornelo, mulher do Sr. Zezinho. A cozinheira era a Sra. Madalena da Talhada. Eu ajudava, fazia as camas e a limpeza.
Servi também na Casa dos Almeidas do Origo. Ainda me recordo do velho professor Almeida a passear para lá e para cá, depois da ceia, enquanto ia cantarolando “Pró céu, pró céu quero ir/Se pró céu queres ir/Não deves roubar nada/Se tiveres roubado/Tens de restituir”. Esta lenga-lenga era cantada sempre com um livro na mão.
Estive a trabalhar ainda em casa da D. Agostinha, em S. Martinho de Mouros. O marido e a mulher eram professores. A certa altura, decidiram ir viver e trabalhar para o Porto e queriam levar-me com eles. Mas eu não quis ir, pois já namorava aquele que viria a ser meu futuro marido. Mas foram boas pessoas, pois deram-me uma mala cheia de roupa.
Percurso após o casamento
Conheci o meu marido quando ele e um seu irmão trabalhavam no cemitério de Paus. Cruzei-me com ele, trabalhava eu em casa do Sr. Zé Domingues. Quando descia o povo para apanhar caldo, dava com eles. Às vezes, metiam-se comigo. Lembro-me do meu futuro cunhado dizer: “não me dá aí um caldinho?”. Mas o Zeferino ajuntou logo: “quem precisa mesmo de um caldinho sou eu”. Um dia, disse: “ó menina, posso dar-lhe uma palavrinha?”. E pediu-me namoro. A minha mãe não se importou. Ele era natural do Cimo de Resende e vinha namorar comigo todos os domingos. Namorámos um ano.
Casei com dezanove anos e o meu marido com vinte e três. O casamento foi na igreja de Paus. Houve um almoço melhorado de arroz e carne. A minha mãe trabalhava na altura prós fidalgos do Fornelo e foram eles que deram a carne, bastante gorda, por sinal.
Como uma tia minha era criada do velho Padre Joaquim, fomos morar para uma casinha ao lado da dele. O meu marido continuou a trabalhar como trolha e eu ia tratando de umas hortinhas.
Como as bocas para comer eram cada vez mais (tive cinco filhos, um deles infelizmente já faleceu), tive de fazer pela vida. Montei uma tenda. Aos domingos e nas festas, o meu marido acompanhava-me. Durante a semana, andava sozinha ou com o meu filho mais velho. Ia para a serra, percorria a Panchorra, a Gralheira, Campo Benfeito, Cutelo…Cá, em baixo, ia de terra em terra, Paus, Barrô, S. Martinho de Mouros, S. João de Fontoura…Batia todas as feiras e fazia todas as festas. Vendia gaitas, balões e brinquedos. Às vezes, quando estava sozinha, roubavam-me mais do que aquilo que vendia. Sabe como é. Quem me fornecia o material era uma casa da Régua. Trazia os artigos de comboio e saía em Porto de Rei. Depois trazia o cesto à cabeça por aí acima.
Mais tarde, entreguei-me de um moinho, pertencente ao Herculano da Póvoa. Moía o milho e os cereais de Moumiz, Quintãs, Lages, Formigal, Origo e outras povoações da freguesia. Tinha uma jerica para transportar as taleigas. Tirava 3kg por arroba quando o transporte era por nossa conta e 1,5Kg, quando iam lá levar os cereais e buscar a farinha. Era muito canseira, mas a gente tinha de se agarrar a qualquer coisa. Deixámos este negócio, porque houve problemas em fazer a escritura definitiva.
Entretanto, surgiu a oportunidade de comprar umas territas abaixo da igreja, junto ao rio Bestança. E começámos a trabalhá-las mais os filhos, já que o meu marido nunca deixou a arte de trolha, aproveitando todos os dias que apareciam, já que sempre davam mais qualquer coisa.
Morte do marido e esperança no futuro
Sem ninguém esperar, o meu marido começou a ter dificuldade em engolir. Fomos ao médico, que mandou fazer uns exames. E aconteceu o pior, pois acusaram uma doença ruim, um cancro na garganta. Ainda esteve internado nos hospitais de Coimbra, tendo vindo depois para Resende. Mas os médicos desenganaram-nos, dizendo que não havia nada a fazer e o melhor era vir morrer a casa, descansado, junto à família. Teve consciência de tudo quase até ao último minuto. Sofreu muito, pois custava-lhe muito comer e até beber. Morreu com sessenta anos. Ainda me chegou a dizer: “Adelaide, tu ficas muito nova”; eu sossegava-o: “está descansado que eu não quero mais homem nenhum”. E assim foi. Nunca me interessei por mais ninguém.
Para governar a vida, depois da morte do meu marido, tive de dar dias fora. Ainda cheguei a trabalhar bastante aqui com a nossa vizinha, a D. Amélia. E tive que arranjar dinheiro para pagar as quotas da Casa do Povo de S. Martinho.
Entretanto, os filhos casaram-se ou saíram de casa. Só ficou o Aurélio, que infelizmente morreu.
Com a reformazinha e as curiosidades que se tiram do campo, lá se vai vivendo. Muito melhor que antigamente. Tomaram os meus pais ter a vida que eu tenho. Haja saúde. Não preciso de medicamentos para dormir e isso é bom. Não gosto de ver televisão. Mas mesmo assim lá vou sabendo as notícias. Para saber misérias não vale a pena. Aquilo agora são só desastres, incêndios, terramotos e mortes. Prefiro ir sabendo o que se passa aqui na terra, que normalmente é sempre o mesmo. Nunca fui pessoa de sair muito de casa. Em solteira também não ia muito a bailes e faziam-se por aí alguns. Mas ainda sou pessoa de ir às festas da freguesia e ao festival do rancho. Olhe, há três anos o doutor dos Carvalhos convidou-me para subir ao palco e dançar e lá fui.
Antigamente, punha-se tudo em pratos limpos nas vessadas. Era tudo cantado à desgarrada: namoros, desavenças, amizades com os padres…Não se nomeava ninguém, mas todos entendiam. Às vezes, as vessadas do outro lado respondiam. Era uma animação, mas era um canseira muito grande. Isto servia para abafar a fome.
Era tudo muito lindo, mas era trabalhar até morrer. Não eram precisos lares da terceira idade, que poucas pessoas chegavam a velhinhas. Só os tolos desejam voltar ao antigamente.
Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.
*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Setembro de 2010
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