terça-feira, 31 de maio de 2011

HISTÓRIAS DE UMA VIDA… EM FEIRÃO: Chamo-me Amadeu Pereira Pinto e nasci em Feirão há 80 anos*

Dados pessoais e familiares
Nasci no dia 29 de Março de 1931. O meu pai morreu perto dos 80 anos e a minha morreu com 48 anos. Tenho quatro irmãos e uma irmã. Felizmente ainda estão todos vivos, excepto a minha irmã. Esta morreu muito nova, com 18 anos, na região de Lisboa, para onde tinha ido trabalhar, pois já lá se encontrava um irmão. Ia a andar junto à linha do caminho de ferro, em Chelas, quando foi apanhada por um comboio. Três irmãos vivem em Lisboa; eu e um outro irmão ficamos por cá, em Feirão. Em termos de idade, sou o do meio. Tenho dois irmãos mais novos e dois mais velhos.
Antigamente chegou a haver no fundo da aldeia uma sala de aula, mas depois a professora foi-se embora e nunca foi substituída. Por isso, o meu pai ainda aprendeu a ler e a escrever. Chegou a escrever muitas cartas da tropa. A minha mãe ainda aprendeu qualquer coisita, mas pouco. Eu infelizmente nunca fui à escola, pois no meu tempo não havia professor. Dois dos meus irmãos aprenderam a ler e a escrever em Lisboa.
Tenho sete filhos (duas filhas e cinco filhos). Quatro vivem na Marinha Grande, um em Lisboa, um em França e um Feirão. E tenho quinze netos e três bisnetos. Os meus filhos frequentaram cá a escola e fizeram todos a quarta classe. A vida também não foi fácil para eles, já que, de manhãzinha, muitas vezes por volta das 7 horas, saiam para o monte com o gado antes de ir para as aulas pelas 9 horas. À tarde, depois da escola, voltavam outra vez a guardar o gado.
Casei quando tinha 24 anos com uma rapariga aqui de Feirão. Morreu há dois e pouco. Tinha então 77 anos. Foi a maior perda da minha vida. A vida de um homem sem uma mulher não é nada. E então nesta idade, pior ainda. Depois da morte dela, a minha vida ficou escangalhada. Naquela altura, passei muitas noites sem dormir e até me vi obrigado a pedir ao médico que receitasse qualquer coisa para dormir. Agora vivo aqui com a minha filha.

Até aos 16 anos, em Feirão
Os meus pais sempre foram caseiros e tiveram uma vida difícil. A fonte de maior rendimento era o gado. E também era uma base para a alimentação através do leite e queijo. A minha mãe e a minha mulher chegaram a fazer bastante queijo. Embora houvesse bastante cereais e os meus pais cozessem pão com alguma frequência, recordo-me de em pequeno ter ido pedir pão a Cotelo.
A partir dos seis/sete anos, a minha vida passava-se nos montes a guardar o gado. Os meus pais chegaram a ter quatro vacas e cerca de quinze ovelhas. Saía por volta das 9 horas. Ao meio dia, um dos meus irmãos ia levar-me o almoço numa marmita e ao anoitecer voltava para baixo. Cada um ia para as suas tapadas. Nestas só os donos é que podiam entrar. Nos montes andava-se à vontade com o gado e ninguém ralhava.

No Douro até à reforma
A partir dos dezasseis anos fui para o Douro trabalhar durante todo o ano e não apenas nas vindimas e na poda. Ia a pé por Bigorne, Lamego, seguindo depois até à Régua. Aí continuava a pé, no caso de os patrões ou feitores não nos virem buscar em camionetas. Cheguei a ir a pé até às quintas do Pinhão. Só vinha cá nas festas e de vez em quando para vir buscar pão. Sem contar com a época das vindimas, havia sempre que fazer. Em Outubro/Novembro, fazia-se a cava da água. Em Março/Abril, fazia-se a cava da vinha para pôr adubo. Havia ainda a apanha e a limpeza dos ramos da poda, a desfolha, a sulfatagem…, não contando com a apanha das azeitonas.
Percorri muitas quintas por esse Douro fora. Recordo-me de ter trabalhado em Loureiro, Vilarinho de Freires, Vila Nova de Poiares, Quinta do Crasto, Covas do Douro, Quinta do Noval, Quinta do Vale de Figueiras, Quinta das Sopas de Cima e Quinta das Sopas de Baixo.
Quando comecei a trabalhar no Douro, muitas vezes não andava com estômago aconchegado. Em muitas quintas, havia dez a quinze trabalhadores permanentes. Logo que nos levantávamos, tomávamos o mata-bicho com bagaço e broa. O pão não era fornecido pelo patrão. Ao almoço, era servido um caldo. Ao jantar, a seguir ao caldo era servido um prato de arroz com feijão. Na ceia, normalmente repetia-se a ementa do jantar. Quando o trabalho era mais duro ou em noites em que tínhamos de ir para o lagar, comia-se um pouco melhor. Acrescentavam uma posta de bacalhau ou sardinhas. Tenho de confessar que às vezes ficava com fome. Só para ter uma ideia das dificuldades, lembro-lhe que chegaram a servir caldo sem adubo. Para fazer frente à pouca comida, chegávamos a ir à Régua ou Pinhão comprar couratos, porque era o que se encontrava mais barato para fazer umas sandes, quando a fome apertava.
Uma excepção acontecia numa quinta em Vila Nova de Poiares. O dono, o Sr. Valente Costa, que vivia durante o resto do ano no Porto, gostava de nos ver satisfeitos. Mandava matar de três em três dias um borrego. E falava com os trabalhadores como se fossem da família.
Agora, olhando para trás, acho que foi um tempo em que tive oportunidade de conhecer outras gentes e terras. Também serviu para abrir os olhos. E apesar do trabalho duro, sobrava tempo para nos divertirmos. As rogas levavam músicos para acompanhar o trabalho da sova e fazer uns bailaricos nos fins de semana.

Operação a um joelho
Como já lhe disse, felizmente não tenho tido problemas de saúde. Aqui na serra o ar puro e a água curam todas as maleitas. A única operação que fiz foi a um joelho, o da perna direita. Começou-me a doer bastante e fui a um médico que me receitou umas injecções, mas não passava. Por isso, fui a um médico dos ossos a Lamego, que não esteve com meias medidas, pois, ao ver a infecção a alastrar , lancetou o joelho a frio, o que fez com que saísse muito pus. Mas não notei melhoras, pois as dores continuaram.
Então, um dos meus filhos, que está na Marinha Grande, levou-me a uma consulta ao hospital de Leiria. Uma biopsia e uma ecografia não acusaram nada. O médico achou estranho e, por isso mandou fazer um exame complicado, tendo ido para um túnel, onde me deitaram para ser fotografado. Acho que chamam a isto ir fazer um TAC. O médico, ao ver o resultado, ficou assustado e disse: “oh homem, você tem de ser operado já”. Passados poucos dias, fui para a faca. Já na sala de operações, deram-me uma injecção. Depois de alguns minutos, a médica perguntou-me que é que sentia e eu disse: “começo a sentir as pernas dormentes”. E eu só ouvi: “isso é que é preciso”. Até que comecei a não sentir nada da parte debaixo do corpo. O médico começou o trabalho e eu a ver tudo. Fez três buracos e foi raspando tudo. Ao ouvir “correu tudo bem”, fiquei satisfeito. Depois, levaram-me para uma enfermaria e alguém ficou espantado por estar com o relógio. Eu disse: “eu não escondi nada; já me levaram assim lá para dentro”.
Ao outro dia, fui para casa do meu filho e comecei a melhorar. Fiz um esforço por ir andando devagarinho e foi assim que em pouco tempo me curei.

Vida realizada
Estou com oitenta anos e sinto-me uma pessoa realizada. Acho que eduquei bem os meus filhos. Têm todos uma vida bem organizada. São muito meus amigos e telefonam frequentemente a saber de mim.
Parti do zero, pois não herdei nada dos meus pais. Andei no Douro até aos sessenta anos. Lembro-me de ganhar oito escudos ao dia. Depois o ordenado subiu para dez, doze, quinze e por aí acima. Com o dinheiro que ganhei ajudei a criar os meus sete filhos, comprei e ampliei uma casa e adquiri várias propriedades. A minha mulher também trabalhou muito, pois teve de cuidar sozinha de casa e de sete filhos. Estes deram uma grande ajuda, tomando conta do gado. Cheguei a ter quinze ovelhas, três cabras e dois ou três bezerros.
Com a reforma e com o que tenho vivo bem. Ainda ajudo a minha filha e genro na guarda do gado. Os meus filhos que vivem na Marinha Grande insistem muito para que passe lá umas temporadas. Às vezes, cedo e vou, mas estou sempre com vontade de regressar a Feirão. É aqui que me sinto bem. Estes montes e estes ares dão-me saúde. Por insistência do meu filho, emigrado em Paris, fui até lá com a minha mulher. Subi a Torre Eiffel e visitei os Campos Elísios. A propósito da Marinha Grande, sabia que há cerca de cinquenta pessoas de Feirão a viver lá? Uns foram chamando os outros a partir de 1965. A maioria encontra-se a trabalhar nas fábricas de vidros e felizmente não conheço ninguém desempregado. No Verão vêm até cá e isto anima muito.
Mesmo sem cafés gosto disto. Vou por aí, converso com as pessoas e gosto de ir até aos campos. De forma permanente, ainda vivem cá cerca de cinquenta moradores. Dez trabalham no Douro. Há cinco crianças. Várias pessoas que ficaram por cá vivem das terras e do gado. Ainda há dois rebanhos de ovelhas e muita gente cria vacas. Embora menos do que antigamente, há muitas terras cultivadas com batatas, milho, centeio e feno.
À noite, vejo alguma televisão para me distrair. Mas para lhe ser franco, até gosto mais de ouvir rádio.

Nota: “Histórias de uma vida…” é fruto de uma conversa não gravada, podendo não corresponder exactamente ao que nela foi afirmado.


*Apontamento da autoria de Marinho Borges, publicado no Jornal de Resende, número de Maio de 2011
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