Tenho imenso prazer em fazer um relato da entrada no Seminário de Tomar, pela alegria que isso me trouxe. Eram tempos inimagináveis.
A vinda para o Seminário, com tudo o que isso representou, constituiu a maior aventura da minha vida. Foi algo que desejei e que até aos sete anos ocupou muito do meu imaginário. Os horizontes das maiores distâncias percorridas ficavam-se por Lamego, onde ia frequentemente, a pé, acompanhando o meu pai nas visitas a familiares, nas deslocações às feiras e nas idas à festa da Senhora dos Remédios, e por Sernancelhe, onde fui uma vez numa excursão do grupo da catequese em romaria à Senhora da Lapa, nunca tendo, pois, excedido os setenta quilómetros para além de Paus, a freguesia de Resende, onde nasci. O mundo para além desta distância era criado pela imaginação. E o que me cativava era a África e o mar desconhecidos. O mar era uma imensidão de água sem fim; a África era uma floresta contínua, habitada por animais selvagens, de grande porte, semeada de pequenas aldeias, de casas de colmo, junto a lagos e grandes rios. Foi por isso com emoção que, num dia de Julho de 1961, subi com o meu pai a serra das Meadas para ir ter com o então Padre Carlos, o chamado tio missionário, a Magueija, próximo de Lamego, onde me esperava para fazer o exame de admissão, o qual foi feito com um outro candidato. Efectuei a prova dando o meu melhor, pois era a chave da mudança de rumo da minha vida. Tive dúvidas acerca de um problema. Por isso, saí da prova adensado em dúvidas e interrogações sobre o meu futuro. Enquanto o meu pai falava com o Sr. Padre Carlos, dizia para comigo: “Será que vou passar? Terei hipóteses de entrar? E eu que podia ir para o Seminário de Resende, que o pároco da freguesia até tratava de ajudar a pagar as despesas...”. E depois culpava-me: “Quiseste ir para longe, para os Seminários onde já andam o Tomás, o Anselmo e o Vítor e às tantas não entras”. Estes pensamentos também me atormentavam, pelos efeitos devastadores na minha auto-imagem. Os meus irmãos eram considerados por toda a gente da freguesia alunos brilhantes “Os filhos do Alfredo Borges é que são espertos”, dizia-se. Se eu chumbasse, era o mundo que desabava. Mas num dia de Agosto, chegou a tão desejada e temida carta a Vinha Velha de Paus, que foi entregue pelo carteiro, o Sr. Miranda. Foi a medo que a abri. Mas era portadora de boas novas. Anunciava que tinha sido aprovada a minha entrada no Seminário de Tomar, indicando o dia em que nele deveria dar entrada.
Ficou combinado que iria com um soldado de Paus, que cumpria o serviço militar em Tomar. No dia aprazado, ou seja no dia 1 de Outubro, lá fui com alguns apetrechos enfiados numa bolsa de pano para a estação de Porto de Rei, na linha do Douro, acompanhado da minha mãe, do dito soldado e de uma senhora, que transportava uma mala (mais propriamente, uma caixa tosca de madeira) à cabeça, contendo a roupa, lençóis, cobertores e toalhas, que deveria ser despachada. A despedida não me custou. Afinal estava a realizar um sonho. Já não me recordo das emoções da viagem. Do que senti na mudança de comboio em Campanhã, no Entroncamento…., como me desenrasquei nas idas à casa de banho…, que conversas tive com o meu acompanhante militar (as indispensáveis, com certeza , que eu sempre fui de poucas palavras)...Tudo se apagou.
Cheguei a Tomar, era já tarde. O militar indicou-me a direcção do Convento e eu lá fui sozinho por aí acima. Chegado lá, fiquei todo baralhado, pois encontrei todas as portas fechadas. Olhei para todos os lados, mas não aparecia ninguém. E pensei: “é estranho, ao menos na minha terra está sempre gente a passar nos caminhos”. E avancei até encontrar gente. Na primeira casa que me apareceu, chamei a medo por alguém. Apareceu-me um senhor de meia idade que me informou como deveria fazer. Pelo modo como me falou fiquei sempre com a ideia de que não deveria simpatizar muito com padres, pois foi seco nas palavras, parecendo querer ver-se livre de mim. Na porta da entrada do Seminário, seguindo as instruções recebidas, toquei à sineta. Apareceu-me um padre a quem expliquei ao que vinha. Tudo isto aconteceu, porque cheguei um dia antes da data aprazada. Pouco depois, apareceu o meu primo, o Irmão José Ribeiro, que nunca mais me largou e me foi mostrando os cantos do grande casarão. Uma das primeiras coisas que lhe disse foi mais ou menos isto: “nestes corredores era capaz de passar uma “carreira”; e isto é tão grande que dava para todas as pessoas da nossa terra virem para cá morar”. Passado algum tempo, disse-me: “tu deves vir larado de fome”. E foi-me fazer umas sandes de queijo.
Vir de um meio pequeno e ser “despejado” de repente num convento gigantesco é obra. Ainda hoje me admiro da forma rápida como decorreu a minha adaptação. Como dormi sempre serenamente numa grande camarata, como me habituei a estudar numa grande sala, como me esforcei por cumprir regras exigentes e horários… Tudo num ambiente bem estruturado e previsível, mas sob o peso e a dimensão de corredores, claustros, escadas, janelas, abóbadas, naves…pouco consentâneos com o acolhimento e a vida quotidiana de crianças. E assim se passou o ano lectivo de 1961/62.
Já de novo em Tomar, gozadas as férias em Paus, e preparado para iniciar o segundo ano no Convento de Cristo, foi com enorme satisfação que recebi a notícia de que tinha sido um dos seleccionados para fazer esse ano em Valadares, mais propriamente em Vilar do Paraíso, com a missão de ocupar e dar vida às duas quintas, ligadas entre si, recentemente adquiridas pela Sociedade Missionária.
*Retirado do livro "Valadares-Seminário da Boa Nova: 50 anos/Lembranças dos primeiros tempos", coord. de Aires de Nascimento e editado pela ARM (Associação dos Antigos Alunos da Sociedade Missionária da Boa Nova)