O Grupo de
Danças e Cantares “Os Moleiros” de Cárquere realizou um “Convívio”, pelo
terceiro ano consecutivo, no passado dia 17 de março, com o objetivo de
recuperar e reativar os jogos tradicionais da cavilha e, sobretudo, do pião.
Compareceram à
iniciativa, que decorreu na antiga escola primária de Passos, sede da
Associação, cerca de duas centenas de pessoas, provenientes da região, que não
quiseram perder a oportunidade de recordar memórias e tradições de um tempo não
muito distante. Uma oportunidade, também, de convívio social, numa época em que
os brinquedos tecnológicos substituíram os jogos tradicionais. “Muita da gente
que saiu da escola a jogar o pião só agora, com estas iniciativas, o volta a
fazer, regressando às suas origens”, refere Alberto Pinto, Presidente da Direção dos Moleiros.
Se a maioria das
pessoas veio para assistir à iniciativa, outros prepararam-se para uma
competição saudável, que estimula o desenvolvimento de habilidades variadas,
como a capacidade de concentração, a coordenação motora, a agilidade dos
reflexos e a criatividade.
O torneio
oficial, à volta da escola, com prémios simbólicos, começou. Compreende-se,
desde logo, porque este é um jogo de rapazes. Para além da habilidade e
perícia, é necessário muita pontaria e, sobretudo, força… “– É à malhão!”,
ouve-se repetidamente, em contraponto com o “saca baraça”, de quem prefere
lançar o pião de uma forma mais lúdica.
Os participantes
envolvem o pião a partir do ferrão com uma baraça apertada, metida no dedo
médio, seguram-no na mão, com o bico voltado para
cima, e lançam-no ao chão com um forte impulso, tentando acertar e fazer mossa
nos que já lá estão. Depois é pegar o pião de “funil”, de “tesoura” ou à
“machado”, pondo-o a girar na palma da mão, recordando um gesto simples que animou
e entreteve gerações.
Os grandes
vencedores deste ano foram Arnaldo José Pinto Portela e José Pinto Lourenço,
que conseguiram uma volta à escola sem irem à forca, acertando consecutivamente
nos piões adversários, sem que os seus deixassem de girar.
O jogo terminou,
depois de uma tarde de convívio são e da partilha de muitas histórias
divertidas. Os piões são religiosamente guardados para novas contendas, fazendo
jus à letra da música tradicional: “Eu tenho um pião, um pião que dança / Eu
tenho um pião, bem na minha mão / Gira que gira o meu pião / Mas não to dou,
nem por um tostão”.
Para combater o
cansaço que começa a invadir participantes e espetadores, a organização
ofereceu uma refastelada feijoada, ficando no ar a promessa de um novo
convívio, para o próximo ano.
O artista dos piões
Jorge Costa, de
50 anos, residente no lugar de Tulhas, é o artista dos piões. Das suas mãos
surgem todo o tipo de miniaturas em madeira, como moinhos, canastros e, claro,
os famosos piões, feitos nos tempos livres, uma vez que é funcionário na Câmara
Municipal de Resende.
Desde a infância
que dar vida aos piões não tem segredos para Jorge Costa. “Na escola, já fazia
piões. No monte da P’reira, aqui perto, desprendia as trepas dos pinheiros, de
preferência com nós, para que o pião fosse mais resistente às canicadas.
Depois, em casa, com a ajuda de uma foicinha, pois as facas eram escassas,
modelava-os. Metia-se um prego e já estava”, descreve.
Hoje, as
condições de “fabrico” são outras. Construído num torno, o pião é de madeira
rija, de lodo ou cerejeira, redondo na parte superior, afunilado para baixo,
terminando no “ferrão”, de ferro, preparado antecipadamente. “O segredo está na
forma como se mete o ferrão, o mais direito possível, para o pião andar bianço,
direitinho… Os piões escravinhotos e chincharos, que saltam muito, são mal
feitos…”, relata à medida que gira a madeira, no torno, dando-lhe vida e forma.
Para fazer girar o pião é indispensável o seu acessório, a baraça de lã, de
várias cores, que se enrola à sua volta.
A construção de
um pião, com o material já devidamente preparado, pode durar cerca de uma hora.
No final, surgem pequenos objetos a rondar os 10 cm por 6,5 cm de diâmetro.
“Ainda há pouco
tempo, vendi 25 para França”, conclui o artesão.
Memórias perdidas no tempo
Manuel Lourenço,
de 77 anos, residente na Arrifana, é o decano da companhia e um dos mais ativo
e participativos no jogo e nas memórias de um passado que lhe deixou saudades.
“Cada jogo tinha
a sua época: o do pião era na Quaresma”, recorda. Os rapazes reuniam-se nos
intervalos das aulas ou aos domingos à tarde para jogar ao canico, à forca ou
ao sovelo”, recorda. Um dos jogos mais conhecidos
consistia em traçar no chão um círculo, para dentro do qual os jogadores
lançavam os piões. Quando um não saísse do traçado, ficava prisioneiro,
suportando os efeitos dos golpes desferidos pelos piões dos outros jogadores
até que, obrigado pelas pancadas, acabava por sair do círculo.
Quando se conseguia,
de um golpe, rachar ao meio o pião do adversário era uma “algazarra” que, não
raras vezes, era seguida de uma “cena de pancadaria” entre os intervenientes.
Outras vezes, dada
a violência do arremesso, aconteciam os acidentes: uma “cabeça partida, um
sobrolho aberto”… Algumas das maleitas eram feitas pelos piões mais pequenos,
as piascas ou bilrinhas, pequenos em dimensão mas muito “perigosos e
certeiros”, diz Manuel Loureiro. Qualquer um deles eram muito estimados, porque
“quem ficasse sem pião teria muita dificuldade em arranjar outro…”, lembra.
Outros tempos em
que se desmanchavam as velhas camisolas para fazer as baraças. “Uma vez, por
volta dos 10 anos de idade, roubei um casaco à minha mãe para fazer uma. O pior
foi quando ela descobriu que já não tinha casaco…”, conta.
*Texto da autoria de Paulo Sequeira, publicado no Jornal de Resende, edição de Abril de 2013. Foto da Foto Ideal