Parecem poucos os mais de 70 anos vividos por Afonso para tanto que realizou. Alexandre Herculano diz que sem esse príncipe "não existiria hoje a nação portuguesa e, porventura, nem sequer o nome de Portugal". Com muita fé, inteligência, destreza política, valentia, talento militar, ilimitada capacidade de risco-sem dúvida, mas também com um poder físico invulgar a que não dava repouso, combatendo, dormindo e comendo quando e onde calhava.
Pois este assombroso atleta nasceu e viveu os primeiros cinco anos tolhido das pernas.
Seu grande educador, Egas Moniz, perante esta debilidade do infante, sofreria tanto como os condes portucalenses, pais de Afono Henriques, e rezava por ele a Nossa Senhora.
Dividem-se as narrativas tradicionais. Segundo algumas, teria aparecido numa cavidade de velho carvalho uma imagem da Virgem Maria que logo ganharia fama de milagrosa e a ela dedicaria Egas Moniz uma igreja em Cárquere; outras dizem ter sido revelado em sonhos a Egas Moniz que mandasse escavar .em certo lugar e encontraria ruínas de antiquíssima igreja e uma imagem da Virgem.
De uma ou de outra forma, Egas Moniz-proprietário da quinta de Resende e mais tarde senhor do couto destas terras por doação do nosso primeiro rei-mandou levantar sobre ruínas, que nem saberia de quando datavam, uma igreja para serviço dos cristãos e digna protecção da imagem encontrada, e sobre o seu altar colocou o pequeno infante, passando o nobre cavaleiro aquela noite em vigília frente ao altar. O menino curou-se e fez-se o homem que se viu.
Assim explicam as velhas crónicas o motivo da edificação da Igreja de Nossa Senhora de Cárquere; o povo repete-o há oito séculos e até hoje nenhuma prova em contrário se conhece.
O Morro das Procissões contém incalculável riqueza arqueológica, de onde saiu já volumoso espólio de lápides para museus de Lisboa, Porto e Guimarães.
O castro céltico que era Cárquere tornou-se depois importante povoação romana, mas quanto a provável existência pré-céltica nada se sabe, por enquanto.
Aventaram-se hipóteses acerca da igreja arruinada sobre a qual Egas Moniz edificou a de Nossa Senhora-teria sido templo pagão romano, talvez dedicado a Diana, depois suevo e visigodo, convertido mais tarde em mesquita muçulmana derrubada na Reconquista.
Referem ainda outras antigas vozes populares que o último rei visigodo, D. Rodrigo, não teria sido morto pelos Sarracenos na decisiva Batalha de Guadelete (711), mas fugira para o Ocidente e continuara lutando contra os invasores até morrer em Viseu, e que na fuga enterrara num destes cabeços um cofre cheio de preciosas relíquias, uma cruz e uns sinos.
À igreja de Cárquere, fundada quando D. Afonso Henriques era menino, acrescentou-se, perto de 20 anos depois, um pequeno convento que foi entregue aos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho-para alguns autores a primeira comunidade do cenóbio era de monges negros, beneditinos.
A igreja situa-se num avançado cabeço da serra de Montemuro, verdadeiro maciço de grandes montes e soberbos vales que procuram o Douro e o Paiva.
Recuperava-se o povoado de Cárquere graças à igreja e ao pequeno mosteiro onde a vida correria tranquila neste lugar de acesso então algo trabalhoso, mas muito propício à meditação. Porém, talvez do isolamento, começou a comunidade dos "Crúzios" a deixar-se acomodar e a desleixar as exigências da regra, mesmo depois de D. João III entregar o cenóbio aos Cónegos de Santa Cruz de Coimbra.
No entanto, o Mosteiro de Cárquere, embora mantendo-se de cónegos regrantes, não se integrou na Congregação de Santa Cruz, à qual aderira a maior parte dos mosteiros agostinianos após a reforma da segunda metade do século XVI.
Pouco tardou nessa situação de certo desapego, pois o Papa Gregório XIII ordenou a extinção da comunidade de Cárquere, entregando-a à Companhia de Jesus, e as suas rendas ao Colégio que a mesma ordem edificara em Coimbra.
Os Jesuítas deram nova vida ao mosteiro instalando nele um hospício onde prestavam assistência aos moradores de Cárquere e recolhiam, tratavam e alimentavam gente pobre.
Após a expulsão dos Jesuítas em 1759, o Marquês de Pombal entregou o mosteiro e o padroado da igreja à Universidade de Coimbra. A partir daí, vazio e desprezado-só não abandonada a cobrança das rendas-, o mosteiro entrou em progressiva ruína.
Passou a igreja a pertencer ao padroado real do concelho de Resende e conservou-se como sede da paróquia de Santa Maria de Cárquere.
Classificada como monumento nacional e devidamente restaurada, a igreja conserva parte do seu carácter primitivo, românico do século XII.
Na bela torre sineira, quadrangular, erguida no século XIII, junto à cabeceira, abrem-se janelas geminadas nas suas faces e o eirado constitui privilegiado miradouro das deslumbrantes panorâmicas de grandeza, formas e cores inolvidáveis.
Nos fins do século XIII ou princípios do XIV realizaram-se obras de vulto. A elas se deve a capela-mor, com abóbada de bem lançadas e executadas nervuras.
Mais tarde, no primeiro terço do século XVI, remodelou-se a nave-talvez por degradação do estado da primitiva-obras que lhe imprimiram o cunho manuelino que conserva.
O espaço interior, harmoniosamente proporcionado, envolve-nos num ambiente de austera religiosidade para o qual contribui a cor e a simplicidade da silharia.
As obras manuelinas vieram acrescentar elementos de elaborado decorativismo sem, no entanto, perturbar o sabor monástico; a elas se refere, com demonstração da beleza plástica da arte manuelina, Aarão de Lacerda: "...os arcos das portas, os do cruzeiro e do coro e a cachorrada da cornija".
Mas duas encantadoras peças escultórias enriquecem particularmente a valia estética da igreja. Uma delas mede pouco mais de um palmo de altura, delicado marfim que representa Nossa Senhora de Cárquere. A outra, de Nossa Senhora-a-Branca, foi esculpida no século XIV em calcário de Ançã.
Integrada no núcleo mais antigo da igreja, a capela dos senhores de Resende contém vários sepulcos de pessoas da nobre família.
As casa que restam do antigo mosteiro, restauradas, completam aprazível e belo conjunto arquitectónico.
*Texto transcrito d' "As mais belas igrejas de Portugal", vol. II, de Júlio Gil e Nuno Calvet, colecção Património, Editorial Verbo.