Coordenadas GPS
N 41º 5’34.61´´
W 08º 0’32.53´´
A Casa do Espírito Santo é um dos solares mais interessantes e originais do concelho de Resende, com a sua capela (semi)circular, de óculo, a meio da frontaria, ladeado por inscrição (“Esta capela / mandou fazer / António Pereira / Pinto capitão que / foi de Amboíno. / Ano de 1676”) e brasão (armas dos Pachecos, Pereiras, Padilhas (?) e Pintos). A sua construção deve-se a António Pereira Pinto, natural de Vigião, em Freigil, capitão e governador da ilha de Amboíno, no Extremo Oriente, que defendeu, com bravura e sucesso, dos ataques e cercos regulares dos nativos islamizados, e consolidou a sua fortaleza, sob invocação de Nossa Senhora da Anunciada (1592/93).
Diz a tradição oral que ao regressar a Portugal, famoso e rico, mandou construir a Casa e a Capela do Espírito Santo, em Miomães, em cumprimento de uma promessa ou voto feito ao Divino Espírito Santo, quando se viu perdido numa tempestade no alto mar. À capela vinculou, em morgado, várias terras com a obrigação da celebração de duas missas semanais.
Várias tradições religiosas e culturais estão-lhe associadas. Antigos clamores e procissões de ladainhas por aqui passavam e, na ala virada ao rio Douro, da década de 30 à década de 70, do século passado, aí funcionou a escola primária feminina. Pelo seu valor cultural, este bem móvel privado, tal como outros de igual valor concelhio, deveria ser objeto de classificação como “Imóvel de Interesse Municipal”, de forma a salvaguardar o seu interesse histórico e arquitectónico.
Na rubrica “Olhares”, do Jornal de Notícias (edição de 2 de Setembro, pág. 42 e 43), uma iniciativa patrocinada pelo Casino da Figueira com o objetivo de alertar e inventariar o património português de elevado valor arquitectónico, em degradação, a Casa e a Capela do Espírito Santo foi objeto de uma extensa reportagem. O Jornal de Resende reproduz o ensaio efetuado pelo Arquiteto Luís Aguiar Branco, denominado “Capela feita à romana”, com a colaboração de Pedro Cardoso.
“O tempo dos Descobrimentos constitui uma revolução no Mundo, mas também no Homem, contribuindo para uma nova consciência sobre a diversidade paisagística e cultural dos territórios, que coexistem na forma circular do planeta e propiciam infindos caminhos do saber experimentado nas trocas e na miscigenação. O ciclo milionário das especiarias disponibiliza o usufruto de sucessivas gerações de portugueses aos grandes centros do Renascimento cultural europeu, com particular destaque e fascínio por uma Itália que redescobria os valores clássicos da arquitetura romana. A impressão dos tratados de arquitetura clássica difunde os ideais da razão, harmonia, proporção, composição e beleza, aproveitando a música, a matemática, a geometria e o desenho para sistematizar modelos de equilíbrio e perfeição, configurados em gravuras de fachadas, plantas, perspectivas e pormenores construtivos “ao romano”.
Uma descrição existente num dos volumes do “Nobiliário de Famílias de Portugal” de Felgueiras Gayo informa que “António Pereira Pinto, Capitão da Fortaleza de Amboíno no Estado da Índia, Instituidor do Morgado do Espírito Santo com capela feita à romana, que se vê junto do lugar de Miomães, concelho de Aregos, em que se veêm as Armas dos Pintos”, situação comprovada na inscrição exterior da capela existente na mesma freguesia, mas no concelho de Resende por motivo de ter sido extinto o concelho de Arêgos no séc. XIX. O ideal clássico “ao romano” irá ser transposto com uma adaptação vernacular neste solar, eliminando o ornato e procurando a pureza geométrica do retângulo (duplo-quadrado) que recebe, ao centro, a perfeição do volume saliente da capela circular e cobertura em meia-esfera, de evidente simbolismo celeste. Excetuando algumas alterações posteriores, tudo o resto está subordinado a uma ideia geral de regularidade e simetria, nas fiadas graníticas, na composição das fenestrações das fachadas, incluindo no espaço das pedras que ladeiam o óculo central (enquadrando o brasão familiar e parte da inscrição acima descrita), para além da cornija pouco saliente e de uma consciente eliminação da cruz na capela, substituída pela sineira e pela escultura de S. João Baptista que se encontrava, originalmente, no topo da cúpula. Esta simplicidade, quase humanista, é característica de uma época desornamentada do séc. XVI que se prolonga nos séculos seguintes, pelo que me parece plausível que a data (pouco visível) na inscrição corresponda ao ano de 1616. Colabora com esta datação temporal o facto de António Teixeira Pinto ser cunhado de Rui Teixeira de Macedo (fidalgo da Casa Real em 1579), e também por a ilha de Amboíno ter sido definitivamente perdida para os holandeses em 1615.
A geometria desornamentada deste valioso objeto arquitetónico deverá, certamente, ter contribuído para o desinteresse geral que o seu abandono ruinoso inspira, por manifesta incompreensão estética.”
Ornamento e arquitetura
O conjunto da casa e capela do Espírito Santo é um excelente exemplo de arquitetura desornamentada com valor patrimonial a preservar
Na introdução de um livro sobre Arquitetura, já não me lembro bem qual, li a anedota, ou história, como preferirem, de um fabricante de estruturas metálicas que vendia marquises em diversos estilos: colonial, gótico, clássico, moderno, etc. Após um temporal, o representante da fábrica deu-se ao trabalho de telefonar para alguns dos seus clientes, para saber se as marquises tinham resistido. Um deles, cuja marquise tinha sido levada pelo vento, respondeu-lhe: “O edifício resistiu bem, mas a arquitetura voou”.
O ornamento é uma parte essencial da arquitetura, ele surge, desde a Antiguidade, associado a uma ordem e a um cosmos primordial. Os gregos deram-se ao trabalho de o disciplinar e classificar, atribuindo-lhe, exatamente, a designação de “Ordem”. Em certas épocas e diferentes civilizações, contudo, por razões complexas, que incluem fatores históricos, culturais ou simbólicos, ele foi mais utilizado que noutras. O que não transforma a arquitetura desornamentada numa arquitetura de segunda, como o provam, por exemplo as formas geométricas puras das pirâmides do Egito ou o Museu de Serralves do arquiteto Siza Vieira.
Na história da arquitetura portuguesa também surgem, obviamente, períodos em que foi dada maior importância ao ornamento. No início do século XVI, por exemplo, o Manuelino deixou a marca de uma decoração pesada, tardo-gótica e, por vezes, já renascentista. A partir dos meados do século, contudo, surgem – e refiro-me apenas ao Norte do país – construções com uma grande sobrecarga ornamental, a par de outras em que a abstração geométrica “desornamentada” tem tendência a dominar. Seriam os artistas e encomendadores que estiveram associados a esse tipo de arquitetura, mais ignorantes do que os que mostraram a sua preferência por um tipo de construção mais decorado? Obviamente que não, até porque, frequentemente, os mesmos personagens estiveram associados aos dois casos.
O conjunto de casa e capela de que trata o artigo é um excelente exemplo de arquitetura desornamentada. Sei que ele, pelo seu carácter aparentemente menos espetacular, poderá, eventualmente, ser menos apreciado. Por essa razão é urgente chamar a atenção para construções como esta; é necessário ensinar as pessoas a apreciá-las, a estimá-las, a estudá-las e a conservá-las. No fundo, a sua aparente descrição até poderá ser uma qualidade; os maiores tesouros são, como todos sabemos, aqueles que não se deixam perceber à primeira...
João Ferrão Afonso, Escola das Artes, Universidade Católica do Porto / CRP
*Apontamento da autoria de Paulo Sequeira, publicado no Jornal de Resende, número de Setembro de 2011
N 41º 5’34.61´´
W 08º 0’32.53´´
A Casa do Espírito Santo é um dos solares mais interessantes e originais do concelho de Resende, com a sua capela (semi)circular, de óculo, a meio da frontaria, ladeado por inscrição (“Esta capela / mandou fazer / António Pereira / Pinto capitão que / foi de Amboíno. / Ano de 1676”) e brasão (armas dos Pachecos, Pereiras, Padilhas (?) e Pintos). A sua construção deve-se a António Pereira Pinto, natural de Vigião, em Freigil, capitão e governador da ilha de Amboíno, no Extremo Oriente, que defendeu, com bravura e sucesso, dos ataques e cercos regulares dos nativos islamizados, e consolidou a sua fortaleza, sob invocação de Nossa Senhora da Anunciada (1592/93).
Diz a tradição oral que ao regressar a Portugal, famoso e rico, mandou construir a Casa e a Capela do Espírito Santo, em Miomães, em cumprimento de uma promessa ou voto feito ao Divino Espírito Santo, quando se viu perdido numa tempestade no alto mar. À capela vinculou, em morgado, várias terras com a obrigação da celebração de duas missas semanais.
Várias tradições religiosas e culturais estão-lhe associadas. Antigos clamores e procissões de ladainhas por aqui passavam e, na ala virada ao rio Douro, da década de 30 à década de 70, do século passado, aí funcionou a escola primária feminina. Pelo seu valor cultural, este bem móvel privado, tal como outros de igual valor concelhio, deveria ser objeto de classificação como “Imóvel de Interesse Municipal”, de forma a salvaguardar o seu interesse histórico e arquitectónico.
Na rubrica “Olhares”, do Jornal de Notícias (edição de 2 de Setembro, pág. 42 e 43), uma iniciativa patrocinada pelo Casino da Figueira com o objetivo de alertar e inventariar o património português de elevado valor arquitectónico, em degradação, a Casa e a Capela do Espírito Santo foi objeto de uma extensa reportagem. O Jornal de Resende reproduz o ensaio efetuado pelo Arquiteto Luís Aguiar Branco, denominado “Capela feita à romana”, com a colaboração de Pedro Cardoso.
“O tempo dos Descobrimentos constitui uma revolução no Mundo, mas também no Homem, contribuindo para uma nova consciência sobre a diversidade paisagística e cultural dos territórios, que coexistem na forma circular do planeta e propiciam infindos caminhos do saber experimentado nas trocas e na miscigenação. O ciclo milionário das especiarias disponibiliza o usufruto de sucessivas gerações de portugueses aos grandes centros do Renascimento cultural europeu, com particular destaque e fascínio por uma Itália que redescobria os valores clássicos da arquitetura romana. A impressão dos tratados de arquitetura clássica difunde os ideais da razão, harmonia, proporção, composição e beleza, aproveitando a música, a matemática, a geometria e o desenho para sistematizar modelos de equilíbrio e perfeição, configurados em gravuras de fachadas, plantas, perspectivas e pormenores construtivos “ao romano”.
Uma descrição existente num dos volumes do “Nobiliário de Famílias de Portugal” de Felgueiras Gayo informa que “António Pereira Pinto, Capitão da Fortaleza de Amboíno no Estado da Índia, Instituidor do Morgado do Espírito Santo com capela feita à romana, que se vê junto do lugar de Miomães, concelho de Aregos, em que se veêm as Armas dos Pintos”, situação comprovada na inscrição exterior da capela existente na mesma freguesia, mas no concelho de Resende por motivo de ter sido extinto o concelho de Arêgos no séc. XIX. O ideal clássico “ao romano” irá ser transposto com uma adaptação vernacular neste solar, eliminando o ornato e procurando a pureza geométrica do retângulo (duplo-quadrado) que recebe, ao centro, a perfeição do volume saliente da capela circular e cobertura em meia-esfera, de evidente simbolismo celeste. Excetuando algumas alterações posteriores, tudo o resto está subordinado a uma ideia geral de regularidade e simetria, nas fiadas graníticas, na composição das fenestrações das fachadas, incluindo no espaço das pedras que ladeiam o óculo central (enquadrando o brasão familiar e parte da inscrição acima descrita), para além da cornija pouco saliente e de uma consciente eliminação da cruz na capela, substituída pela sineira e pela escultura de S. João Baptista que se encontrava, originalmente, no topo da cúpula. Esta simplicidade, quase humanista, é característica de uma época desornamentada do séc. XVI que se prolonga nos séculos seguintes, pelo que me parece plausível que a data (pouco visível) na inscrição corresponda ao ano de 1616. Colabora com esta datação temporal o facto de António Teixeira Pinto ser cunhado de Rui Teixeira de Macedo (fidalgo da Casa Real em 1579), e também por a ilha de Amboíno ter sido definitivamente perdida para os holandeses em 1615.
A geometria desornamentada deste valioso objeto arquitetónico deverá, certamente, ter contribuído para o desinteresse geral que o seu abandono ruinoso inspira, por manifesta incompreensão estética.”
Ornamento e arquitetura
O conjunto da casa e capela do Espírito Santo é um excelente exemplo de arquitetura desornamentada com valor patrimonial a preservar
Na introdução de um livro sobre Arquitetura, já não me lembro bem qual, li a anedota, ou história, como preferirem, de um fabricante de estruturas metálicas que vendia marquises em diversos estilos: colonial, gótico, clássico, moderno, etc. Após um temporal, o representante da fábrica deu-se ao trabalho de telefonar para alguns dos seus clientes, para saber se as marquises tinham resistido. Um deles, cuja marquise tinha sido levada pelo vento, respondeu-lhe: “O edifício resistiu bem, mas a arquitetura voou”.
O ornamento é uma parte essencial da arquitetura, ele surge, desde a Antiguidade, associado a uma ordem e a um cosmos primordial. Os gregos deram-se ao trabalho de o disciplinar e classificar, atribuindo-lhe, exatamente, a designação de “Ordem”. Em certas épocas e diferentes civilizações, contudo, por razões complexas, que incluem fatores históricos, culturais ou simbólicos, ele foi mais utilizado que noutras. O que não transforma a arquitetura desornamentada numa arquitetura de segunda, como o provam, por exemplo as formas geométricas puras das pirâmides do Egito ou o Museu de Serralves do arquiteto Siza Vieira.
Na história da arquitetura portuguesa também surgem, obviamente, períodos em que foi dada maior importância ao ornamento. No início do século XVI, por exemplo, o Manuelino deixou a marca de uma decoração pesada, tardo-gótica e, por vezes, já renascentista. A partir dos meados do século, contudo, surgem – e refiro-me apenas ao Norte do país – construções com uma grande sobrecarga ornamental, a par de outras em que a abstração geométrica “desornamentada” tem tendência a dominar. Seriam os artistas e encomendadores que estiveram associados a esse tipo de arquitetura, mais ignorantes do que os que mostraram a sua preferência por um tipo de construção mais decorado? Obviamente que não, até porque, frequentemente, os mesmos personagens estiveram associados aos dois casos.
O conjunto de casa e capela de que trata o artigo é um excelente exemplo de arquitetura desornamentada. Sei que ele, pelo seu carácter aparentemente menos espetacular, poderá, eventualmente, ser menos apreciado. Por essa razão é urgente chamar a atenção para construções como esta; é necessário ensinar as pessoas a apreciá-las, a estimá-las, a estudá-las e a conservá-las. No fundo, a sua aparente descrição até poderá ser uma qualidade; os maiores tesouros são, como todos sabemos, aqueles que não se deixam perceber à primeira...
João Ferrão Afonso, Escola das Artes, Universidade Católica do Porto / CRP
*Apontamento da autoria de Paulo Sequeira, publicado no Jornal de Resende, número de Setembro de 2011